Executor

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 3:00 AM, cidade Ω (ômega), distrito industrial de minerais, muralha leste.

 Caminhado a passos largos e apressados, ele para, olha seu reflexo diante de uma poça d'água no chão, resultado da chuva de agora pouco, mergulha em pensamentos, que o carregam para longe dali, com lembranças de um passado não próximo para se uma memória vivida, mas não tão distante para esquecer, pouco mais que um sonho borrado pelo tempo. Subitamente, regressa de instantâneo resgatando por uma voz que o inqueri com autoridade.

__ senhor, este é um setor industrial, precisa de autorização para estar aqui, identifique-se ou terei que escoltá-lo e prendê-lo por invasão, a pena por acesso não autorizado de um setor industrial pode variar de reclusão nos domos ou até execução.

 Ele se vira devagar, o capuz do seu sobretudo oculta seu rosto com uma sombra grossa, o tecido inteligente do sua roupa repele com perfeição a água, formando pequenas gotículas sobre sua superfície, como orvario em uma folha, que lentamente se evaporaram devido a temperatura do lugar, no contra luz, era possível enxergar por alguns segundos uma aura de vapor emanando daquele homem,. Suas mãos são cobertas por luvas de tecido negro, não por frio, por cautela. Devagar desabotoa o punho da luva esquerda, puxa os dedos para soltá-la, e a retira, revelando um código uma série de semicírculos concêntricos em sua palma, algum tipo de código de barras circular, a ação não parece agradá-lo, aquele símbolo nunca o agradou, talvez por isso as luvas.

 O fuzil negro fosco fabricado em polímero cerâmico, pesou na mão do guarda, diante daquele tão simples símbolo, mesmo sendo fabricado para ser tão leve quanto erguer seu próprio braço, ele mudou a postura de disparo para a posição de guarda, colocando a arma contra o peito, e sentindo um soco a cada palpitar cardíaco, temeu pelo erro, nunca, se quer em imaginação deveria ter agido assim para com o portador daquela marca, seu uniforme cinza, com botões negros, similar a um terno, lhe dava poder sobre quase todos os homens daquela cidade, mas não aquele. A máscara de gás era sufocante em sua face, perante o olhar afiado do portador do código de barras.

__ senhor eu...

__ qual sua patente e a qual divisão você pertence?

 A sua voz era fria e penetrante, calma e suave, mas em sua frieza era cortante. O coração do homem de terno quase parou de bater, e seria melhor se o tivesse, a pergunta era simples, porém na boca daquele homem quase atravessou sua alma, e as palavras se esconderam de sua mente, como se até elas sentissem medo dele.

__ te... tenente da divi... divisão...

__ não fale assim, minha pergunta foi simples e direta segurança, não demonstre medo aqui, não vejo motivo para fazê-lo.

 O tenente que fora chamado de segurança, carregava orgulho supremo sobre sua patente, e nada ele permitia que o rebaixasse, porém diante daquele homem não iria ter uma nova chance se contrariasse as palavras do mesmo, morreria ali se ele informasse que deveria fazê-lo.

__ sim senhor, perdão. Sou tenente da divisão 36.

O que lhe restava de sanidade foi usado para ser frio perante o mar de medo que estava prestes a o afogar, ou talvez fosse o mesmo medo que o fizera agir com tal frieza, batendo continência, e falando firme.

__ mas se bem o sei, a divisão 36 não pertence a esta cidade, muito menos aos distritos de minerais, vocês são infantaria, defendem a muralha, não?

__ sim senhor, o senhor está correto, mas pela crescente onda de ataques dos imundos, as divisões em toda a extensão da ordem foram remanejadas, como quase não temos mais ataques do lado de fora, o contingente fora reduzido e os que saíram de lá foram colocados nos centros de manipulação de matéria, algumas divisões como a minha foram remanejadas para outras grandes cidades que precisam de mais homem para o perímetro industrial.

 O homem do código de barras puxou o capuz para trás, revelando um rosto bruto e grosseiro, traços retos e quadrados, nariz e queixo grandes, o rosto grosseiro com marcas aparente, deixava claro a vida pouco gentil, se esquivando da morte vezes de mais para uma para uma vida, talvez para mais que algumas, barba mal feita, cabelos longos e mal cuidados porém brancos como nada ali naquele cenário, amarrados desleixadamente em um coque no topo da cabeça. Olhou para o alto como se a débil luz daquela madrugada o lavasse o rosto, respirou fundo, e olhou novamente para aquele tenente que agora parecia uma criança a temer, sua respiração era desesperada naquela máscara de gás, e o terror em seus olhos atravessavam o vidro fumê de seu visor.

__ este lugar já foi bonito um dia, provavelmente bem antes de mim, mas já foi. Nós contaminamos tudo, ar, solo, água, até a luz temos que filtrar agora, tudo que nos resta é nosso próprio lixo, pagamos por cada pecado aqui, se aqui dentro com todos os aparatos e um mar de gente cuidando para tudo funcionar da devida forma, ainda rastejamos na nossa sujeira, como acredita que é viver lá fora? creio que não saiba oque é inanição, hipotermia, hipertermia, desidratação, e falo no sentido real da palavra, ver de perto, sentir na pele, sentir uma dor no estômago causada por nada, por vazio, sentir aumentar e suas tripas se reviraram e a dor aumentar à medida que você perde as forças, até o ponto de não conseguir se quer sustentar o próprio corpo de pé, oque você faria para aliviar esta dor? e vendo um ente querido passar por isso? até onde iria? quem chama de imundo, não pecou mais do que você ou eu, só por nascer em lugar onde nada pode viver sem ajuda de equipamentos, já estamos indo contra a própria natureza daquele lugar. Se acha mais limpo ou "puro" do que aqueles em quem atira? Tire a máscara soldado, respire este ar, sinta seu cheiro, atire em um deles de perto, olhando em seus olhos, sentindo o cheiro acre de suor e sujeira, sentindo o calor de sangue espirrando no seu rosto, aí sim poderá chamá-los do que quiser, mas não julgue o pecador sem conhecer a tentação. E mais uma coisa tenente, não se engane, vocês estão aqui pois lá fora não têm serventia alguma, os reais inimigos lá de fora, creio que você nunca os viu, quando eles chegam, não dá pra ver, ouvir nem atirar neles, se esgueirar devagar e persistentemente, e você percebe, só que deliberadamente, opta por ignorar, acredita que o inimigo é outro, que a mão que está tornando pesada sua respiração, boca seca, visão turva, não passam de um incômodo, você aguenta mais um pouco, e quando se dá conta, eles já ganharam, porque já estão dentro de você, a morte honrada, com um tiro no peito, não vem, o inimigo te presenteia com visão escura, falta de fôlego, taquicardia, e um monte merda, na verdade todos os fluidos que tiver, saem pelo seu rabo, e é essa sua morte, sem flores, so merda, até as muralhas tremem, acredite é de medo que tremem, e você sequer pode olhar nos meus olhos, considere um prêmio, morrer sozinho.

E novamente sua voz era calma, essa calma criava um cena aterradora, aquele homem não portava uma máscara e ainda conseguia respirar. O ambiente fora das muralhas eram impregnados de radiação, mesmo com a colossal espessura das muralha e o domo sobre elas, parte desta contaminação conseguia passar, uma quantidade mínima, porém suficiente para que o perímetro de 75 km próximo a elas fosse considerado nocivo, os vapores industriais, as poeiras dos minerais e o lixo químico, tornavam as proximidades da muralha inabitáveis para os que não estivessem equipados para esta lá, e mesmo assim só era recomendado estar em terreno aberto antes das 08h00 AM, a radiação combinada com bactérias e partículas minerais suspensas, tornavam o ar uma sentença de morte, mas ele estava lá diante do soldado, sem máscara, e enchendo os pulmões com aquele ar mortal .

__ se... Senhor sua máscara... o senhor ira...

__ não, não irei, me responda: por que usa esta máscara?

A pergunta parecia retórica, irônica, porém ele esperou resposta, e o tenente deveria achar uma mesmo que não houvesse, mesmo que o medo o fizesse engolir a língua, seria melhor responder algo, era uma pergunta direta.

__ o ar neste perímetro e nocivo senhor.

__ teme a morte tenente? Ou teme o modo de morrer?

Seja qual for a resposta, saiba que não demoraria muito para acontecer. Se tirar a máscara, as toxinas deste ar o matariam em 2,35 segundos, bem antes que consiga sentir dor de verdade, as bactérias o iriam decompor em metade de um dia, talvez menos se tivermos um bom sol.

Ele ainda respirava normalmente, calmo, frio. Falava da morte como se fala de um filme que viu, ou de uma música que escutou a algum tempo, mas não muito, como se quisesse convencer o tenente de que aquilo fosse algo bom, como se convence um amigo a ler um livro, que você leu e gostou, mas como poderia? Como poderia aquele homem ter assistido ao filme da morte? Esse filme não tem reprises, só se assiste uma vez, mas ele estava ali, ainda recomendando aquele homem que o fizesse.

__ NÚMERO 37!

Uma voz alta se fez escutar ao longe, subitamente o tente se virou na direção da voz e se pôs em posição de sentido. O homem com o código de barras ainda se mantinha na mesma posição, sequer se deu ao trabalho de virar-se para o lado para olhar, ainda estava ali, calmo respirando aquele ar tóxico, e sendo banhado pelos primeiros raios solares impregnado de radiação. O homem que havia gritado antes, agora se aproximava dos dois, a passos longos, mas não apressados. Olhou para o homem que parecia estar sendo lavado pela luz do sol, e logo em seguida virou-se para o tenente.

__ patente e divisão!

Firme e direto, demonstrando toda sua autoridade, vestia um terno e gravata preta com luvas da mesma cor e uma camisa branca por baixo, sapatos bem polidos, a cabeça sem fios, os óculos escuros e uma espécie de inalador, que lhe cobria apenas a boca e o nariz, tornava difícil especular sua idade, era alto, mais alto que os outros dois e bastante corpulento, me por baixo do terno era evidente sua avantajada musculatura.

__ tenente da divi...

Antes do final da frase, o homem alto tomou o fuzil do tenente, destravou, e atirou, rápido e preciso, dois tiros bem no coração, um movimento limpo, leve e fluido, como um passo de ballet, mal dava pra dizer que existiu.

O som do disparo era quase mudo, apenas a pancada seca do ferrolho do mecanismo interno se chocando contra um corpo de polímero da arma, era como o som de uma caneta de plástico caindo no chão, resultado de muito dinheiro investido no desenvolvimento de armamento furtivo.

O homem de cabelo branco pareceu despertar em um salto, e se virou atônito.

__ o'que é isso Marcos? O'que pensa que está fazendo?

__ eu que pergunto Lucas. Você enlouqueceu? Acha que pode se expor por aí? Você poderia comprometer todos nós, poderia comprometer até mesmo a ordem! Você não é mais um homem comum Lucas, andar sem máscara aqui? E ainda fala com isso?

Falou a última frase apontando para o corpo, como alguém que aponta para um entulho no canto da parede.

__ Você não tem mais lugar entre os homens comuns Lucas, entenda isso. Melhor para você que ele é só um tenente, é mais fácil de limpar.

o olhar de lucas quase o atravessou

__não me olhe assim, já estou cansado de limpar suas merdas, você tem coisa maior com oque se preocupar, a cessão irá começar, e você tem muito oque escutar, e muito mais para dizer.

Marcos falava como um adulto repreendendo uma criança que acaba de cometer um ato inconsequente. Lucas não estava espantado com a cena, apenas bravo com a atitude de Marcos, bravo por se intrometer em uma conversa dele, não pelo amigo ter matado o homem na sua frente, já o vira fazer isso mais vezes do que comer, vezes de mais para uma pessoa., Marcos e Lucas tinha tanto apego a vida humana, quanto se tem a uma folha de papel.

__ escuta Marcos, não queira me dar ordens, nem muito menos me dizer como devo agir, como você mesmo falou, era apenas um tenente, não havia a mínima necessidade de ter matado ele, eu estava apenas aprendendo, e ele não apresentava o menor risco a esse segredo escroto que me obrigam a manter.

Marcos se virou com o rosto retorcido de raiva e se aproximou encarando Lucas do alto, com todo seu porte intimidado.

__ veja bem Lucas, direi mais uma vez, creio que tenha esquecido: nós não estamos nas divisões de elite da grande guerra, você não é mais comandante, aqui não é a nossa antiga base! Pelo amor de deus Lucas, a queda foi a 14 anos, 14 Lucas, nada é como era antes, nem você nem eu somos mais oque éramos, por mais que tentemos ser não seremos iguais a nenhum deles Lucas, você anda pela cidade quando não deveria, Lucas você foi o capitão mais conhecido depois daquela tragédia, seu rosto ainda e recente, você não pode fazer oque quiser assim.

_marcos eu ainda vivo...

_ não Lucas, você vivia! Agora nós somos apenas um instrumento, fomos escolhidos para isso, choramos para que aquelas pessoas possam rir, aquelas lá na cidade, não essas coisas aqui com quem você teima em conversar. Vamos lá, tire a máscara dele

Falou Marcos estendendo a mão apontando para o corpo inerte do tenente.

_não verá uma única diferença de um para qualquer outro, são clones Lucas, são apenas bonecos criados para um fim, dar aos cidadãos a sensação de estarem protegidos do que está lá fora da muralha, eles não tem mulher filhos nem irmãos, eles foram criado a na porra de um tubo a menos de 5 km daqui, até às memoria, oque eles sabem, os interesses, o treinamento q acham que tiveram e as características sociais deles foram implantadas, medo, dor, susto, respeito, seja oque for Lucas, é falso, tudo pré-programado para ser assim, não passam de máquinas orgânicas, não aprendera nada com eles.

__ eu estou aqui não estou?! Eu não aceitei oque eles me pediram?! Eu sou o soldado perfeito que eles queriam, mas não me peça para deixar minha dor de lado, não me peça para largar minha tristeza, essa é a única coisa que ainda me resta de humanidade Marcos.

 A expressão de Lucas alterou completamente, a imagem de um homem calmo de poucos minutos atrás deu lugar a um rosto avermelhado com veias saltando de seu pescoço gritando a plenos pulmões.

 Lucas ao terminar suas palavras, ergueu o capuz jogando seu rosto de volta a penumbra, deu as costas a marcos, e caminhou em direção a muralha, pôs as mãos dentro dos bolsos, baixou a cabeça e caminhou, sem hesitar ou parar, caminhava como se apenas seu corpo soubesse onde ia, como se não precisasse de seus olhos, como se dentro de seu capuz estivesse em outro mundo, e seu corpo fosse um veículo carregando o passageiro que era sua mente.

 Aos pés da muralha ficava fácil de perdê-la de vista se olhasse para cima, a muralha se estendia para além das nuvens, Lucas a superfície e foi contemplado por lembranças, de um passado onde estudava sobre aquela construção, de um tempo onde apenas sonha em vê-la de perto, era feita inteira de matéria sintética que se adaptava às necessidades do ambiente, absorvendo ou liberando calor para dentro ou para fora, filtrava ar, e absorvia praticamente todo tipo de energia luminosa. A muralha não era apenas um muro de proteção, mas um organismo vivo, um órgão crucial para a sobrevivência daquela gigantesca cidade, uma mega cidade, construída assim como todas as outras, a partir dos restos da guerra, restos das primeiras cidades. Muitos a contemplavam como a fênix que ressurge das próprias cinzas, outros como apenas um abutre se alimentando de cadáveres a muito esquecidos.

Lucas tirou a luva da mão esquerda mais uma vez, e tocou novamente a muralha com a palma, desta vez a parede tomou forma ao redor de sua mão, e foi se moldando, até tomar a forma da cabeça de um cão pit bull em tamanho real com a boca engolindo a mão de Lucas, ao retirar a mão, o cão se desmanchou, e um pequeno ponto claro se fez notar onde antes havia a cabeça, o ponto foi aumentando como uma cortina que se abre, até atingir 5 metros, revelando um corredor extenso deixando a imaginar, qual seria a colossal extensão da largura da muralha, Diferente do lado de fora cheio de lodo e de cor escura, as paredes do corredor eram perfeitamente brancas, e o piso de um negro absoluto e fosco.

Antes que Lucas entrasse, sentiu a mão em seu ombro, era Marcos se colocando ao seu lado. Marcos era bem mais alto que Lucas, perdeu os cabelos muito cedo, agora sem o inalador se destacava sua barba negra com as laterais aparadas e a parte do queixo que lhe caía até o peito, lhe davam a aparência de ser muito mais velho que seu irmão de alma como ele falava.

__ Lucas, meu irmão, por favor, faça do meu jeito, só desta vez, cumpra meu único pedido em décadas.

Lucas tirou o capuz, olhou para Marcus, e lágrimas desceram de seus olhos.

__ não tem outro jeito né? Está acabado! Acho que esta minha teimosia era apenas medo, mas vejo que não há outro jeito. Marcos, posso te pedir uma última coisa?

__ claro, sempre lhe neguei, mas acabo por fazer oque você me pede, sempre lhe devi, e vejo que não vou poder pagá-lo ainda nesta vida.

__ você já me pagou, eu que te devo, e vou ter que ficar devendo dessa vez, na verdade são duas coisas que quero pedir! Sempre fui o irmão mais velho, oque sempre fazia tudo só, não quero ficar só desta vez, já chega, e a outra peço depois.

__ mesmo que você não pedisse isto, eu o faria da mesma forma. Vamos ande, vamos acabar de uma vez.

Lucas enxugou as lágrimas nos punhos do sobretudo, e andou, cada passo mais firme e decidido do que o último, com o olhar firme à frente, marcos a seu lado imponente e sério.

 O final do corredor se abria para uma sala triangular, onde ambos os lados eram compostos por vários senhores de barbas e cabelos branco, dispostos em 3 degraus com 10 presenças cada, utilizavam uma espécie de máscara opaca que lhes cobria os olhos e nariz, cada degrau possuía uma diferença de cerca de 1,5m, esculpidos em uma espécie de mármore fosco acinzentado manchado com longos padrões negros, e varias irregularidade, como se fosse apenas escavado e não cortado e polido, similar a pedra crua, este mesmo material não parecia ter nenhuma emenda, como se todo o salão tivesse sido escavado em um único material, que se tornava mais negro a medida que alcançava os níveis mais baixo, ate o preto completo e profundo do piso fosco. Lucas e Marcos pararam por um instante no começo da sala, Marcos tocou o peito de Lucas e tocou no próprio em seguida, rapidamente deu as costas e seguiu para uma das extremidades da sala, entrando em uma porta que dava acesso a uma escada.

 Lucas foi até quase o centro da sala triangular que se afunilava à sua frente, um círculo se ergueu do chão ao seu redor até a altura do seu umbigo, com a espessura de meio metro.

 De algum lugar do degrau mais alto da sala, um dos seus ocupantes se pronunciou.

__ Lucas Exequias, oficial de inquisição, 1° tenente da divisão de busca, contenção e extermínio contra heresia, confirma?

 Lucas baixou a cabeça e sentiu um frio percorrer a sua espinha, era a primeira vez em anos que sentia medo novamente.

__ sim

__ acusado do assassinado de Emanuel de Nazaré, instrutor de artes de combate é alquimia bélica da abadia da catedral da santa ordem na cidade Ω, bruxaria, demonismo, uso de magia pagã, do envolvido com o grupo herético conhecido como abissais, dentre outros poderes profanos. Está ciente de suas acusações, senhor Lucas?

__ sim senhor.

 Enquanto Lucas continuava com a cabeça baixa, dois homens com vestimentas semelhantes a um roupão de algodão cru e amarelado, com capuzes e uma corda também de algodão, porém de cor verde amarrada a cintura, entraram e se posicionaram ambos a sua frente voltados para ele, porém com a face baixa de modo a não revelarem seus rostos.

__ senhor Lucas, ambos os senhores que se apresentam à vossa frente, serão seus acusadores, como membro da ordem, e por vossa vontade, o senhor será seu próprio defensor.

 Devo lembrar a todos, que os crimes pelos quais o senhor é acusado, tanto as lei civis quanto religiosas, e como o código nos instrui, todo e qualquer ato que contrarie as leis básicas da ordem, são puníveis do expurgo, sem direito a recorrência, ou amenidade de nenhuma forma.

 Ressalto ainda, que o senhor está sendo julgado por ato do qual foi apanhado em flagrante com várias testemunhas oculares de seus atos, pensando assim sobre seu julgamento, o cumprimento imediato de sua pena. Sem o direito dos 7 dias de exílio espiritual normalmente concedidos aos que são punidos com expurgo, e passando para 24 horas o tempo máximo para execução de sua pena.

 A vos que se dirigia a Lucas era dura e firme, e a arquitetura da sala fora projeta para rebater e espalhar a voz dos assentos ao redor, de forma a melhorar a acústica mas principalmente tornar indistinguível a direção de origem da voz, causando o efeito parecido com ouvir uma vos onírica, como a vos na sua cabeça, sem origem apenas está lá, e as palavras o fazia tremer de medo, mas Lucas já havia enfrentado a morte mais de uma vez, e se este julgamento fosse levá-lo a ela, não seria muito diferente de outra de suas missões.

__ tenho total conhecimento das leis, e dos parâmetros aos quais este conselho segue, assim deixo claro que estou em total ciência das consequências do que irá acontecer aqui nesta sessão.

 Lucas foi firme e seus olhos emanavam um brilho de desafio. O desafio a que ele mesmo se propunha, de domar seu próprio medo perante a morte, mais uma vez.

 Uma nova voz se fez pronunciar, dessa vez era mais aguda e aveludada, porém parecia ainda mais imponente do que a primeira, parecia a voz de uma mulher.

__ Declaro aberta a sessão do conselho marcial da cidade Ω, dia 4 do mês de urano, quarto ciclo da lua maior de 132, ano de nosso senhor.

 Marcos que havia ido até uma das extremidades da sala, subiu uma escada que se erguia no canto esquerdo próximo a porta, a escada subia em uma espiral, cada degrau ornado com um lobo perseguindo um corvo ao pôr do sol. O final da escada se abria em uma sala pequena quase que inteiramente branca, com uma esfera cinzenta que flutuava a um palmo do chão, bem no centro da sala, está também ornada com o mesmo desenho das escadas. Uma das paredes da sala era totalmente tomada por um espelho, que ia do chão ao teto, e de uma parede a outra.

 Marcos se aproximou da esfera, e ela se abriu ao meio na diagonal, a parte de cima subiu por uma abertura que se abria no teto da sala, a parte que permaneceu, se revelava uma espécie de poltrona, ao acomodar seu ocupante a cadeira tomou uma cor negra que se espalhou por toda a sala, deixando o homem em total penumbra, pouco antes de o espelho se tornar translúcido e ir clareando até tornasse transparente, dando total visão da sala de julgamento, Lucas estava logo a seus pés, e a seu redor todos os juízes do concelho.

 Marcos retirou do bolso de seu sobretudo, uma pequena lâmina de metal do tamanho e formato de uma moeda. Ao pressioná-la entre o dedo indicador e o polegar, a lamina tomou uma forma retangular e ficou pouco maior que a palma de sua mão, segurando o objeto pela lateral mais curta, fez um movimento rápido com o polegar sobre a face do mesmo, a imagem de um corvo tomou forma em holograma.

__ onde você está?

 Marcos mantinha o olhar fixo na sala de julgamento, mas suas palavras eram direcionadas ao corvo que olhava fixo para ele.

__ distrito 7, rua Carla, atrás da doca 14, foi para cá que você me mandou vir.

 O pequeno corvo gesticulava o bico, como se as palavras viessem dele, mas mantinha a postura estática .

__ sim, ouça bem, esta ligação usa um sinal fantasma, assim que eu desligar o sinal irá sumir, nenhum rastro da ligação restará, mesmo assim tome cuidado. Faça oque digo e será simples.

__ acredito em você, mesmo assim, isto ainda me dá medo.

 A voz que vinha do corvo era grave e trêmula, como a de alguém que hesita no que fala, alguém nervoso.

__ vá a um lugar onde o sinal seja melhor porém tenha cuidado, se mantenha fora da vista, vou mandar os códigos para te levar.

 Marcos não olhava para o corvo nem por um segundo, seus olhos não saiam da sala a sua frente.

__ tá cara, só vai logo, aqui está frio. Além disto eu achei que você era contra usar tecnologia proibida.

__ ainda sou, mas tem muita coisa em jogo, e não tem outro jeito de fazer isso. Quando você chegar ao local, procure o dr. Anderson, também conhecido como rubro, ele irá fazer o transplante, logo em seguida, não demore muito, peça a ele um filtro polarizador, volte para sua cidade e aguarde contato.

__ ótimo, só não demora, e promete para mim, quando a gente conseguir pegar o cara que fez isso, eu quero brincar com ele também, se forem vários quero um só para mim.

A voz do corvo agora era mais firme, e detinha uma sarcasmo sombrio, um humor com fome de sangue, como os que se nota na ironia de um assassino.

__ cada um terá sua fatia do bolo, mas lembre-se, a prioridade é salvar o Lucas antes.

__ sabe Marcos, eu me lembrei do meu pai, você ainda lembra dele?

__ claro, ele foi nosso tutor no primeiro batalhão. coroa esfolava a gente em cada treinamento, mas peitava qualquer um que tentasse desmerecer um de nós, arriscou o próprio pescoço várias vezes por isso. O coroa era foda cara, foi ele tava comigo na minha integração do regimento.

 Um sorriso tímido desenhou-se no rosto de Marcos, seus olhos brilharam como os de uma criança que encontra uma loja de doces em meio a uma cidade industrial.

__ o velho era o cara. Olha Marcos ele ficava me falando que heroísmo e uma mercadoria de pouco lucro, quando ninguém mais quer, eles não jogam fora como as outras, eles a destroem, como se fosse nociva. E de certa maneira Marcos, nós já fomos os heróis dessas cidades, me lembro bem da época que as 12 cidades tinham por nós o respeito que só é dado a heróis de guerra. Ririri... A gente era um bando de adolescentes, ganhamos umas brigas, mas nem sabíamos oque era uma guerra.

 O corvo deixou escapar uma risada aguda, curta e tímida entre as suas palavras, mas que delatava o apreço que tinha pelas lembranças que elas traziam.

__ você nunca foi do tipo nostálgico quando deixei você na gaiola.

__ olha o respeito, fala direito da minha cidade. Oque eu estou querendo dizer cara, e que ele falava que quando heróis não são mais necessários, viram vilões. Marcos é a primeira vez que existe uma anistia política dentre as 12 cidades, os crimes foram reduzidos para menos de 1% do que eram a 2 anos, a gente tem tão pouco para fazer nas cidades, que estão arranjando qualquer desculpa para mandar equipes em expedições fora dos limites da ordem, e eles sabem q não tem nada lá fora, acho que eles só querem continuar mandando a gente para la, até chegar uma hora que não vai mais ter ninguém voltando. Marcos, será que eles ainda precisam de nós? Será que já começou, e o Lucas foi o primeiro? Nós somos os vilões agora Marcos?

__ não meu amigo, jogue esse pensamento para longe, nós não somos os vilões, mas eles estão entre nós, e uma coisa digo com toda minha certeza, nunca seremos os vilões, e se por algum motivo eu vir a engolir minha palavra, farei de tudo para ser o pior que eles já viram.

 Marcos falou com a convicção de alguém que está preste a detonar uma bomba, de certa forma seria o que ele gostaria de fazer, aqueles homens já enfrentaram perigos que até os que ocupam os escalões mais altos temiam, eles foram treinados e criados para isso, nenhum outro grupo, divisão ou esquadrão da ordem ou de fora das cidades tinha as habilidades daqueles homens e mulheres. Certa época, logo depois da criação desta divisão, eles ganharam o apelido de 300, eram bem menos, o nome foi dado por todas as missões serem feitas em grupos de 3, não importava o risco ou objetivo das missões, sempre 3.

 Marcos não gostava muito, pois conhecia a história dos verdadeiros 300 de Esparta, e isso o desagradava duplamente, por um lado pelo mito, dos 300 bravos soldados que lutaram uma batalha suicida para defender sua nação mesmo sabendo do numeroso exército que enfrentavam, Marcos preferia a inteligência no lugar da bravura, poupar soldados, cada paso dados em suas missões, era visando preservar a vida de seus irmão, marcos não via sentido em morrer, fosse por honra ou qualquer outra ideia de glória, o sentido estava em viver, ficar vivo já era ganhar, e por outro lado, a história real dos espartanos era bem diferente dos mitos, nem de longe a honra era algo que existia entre os espartanos, muito menos bravura, recuaram e desistiram de várias batalhas, e aí que marcos se incomodava de verdade, mas sabia, que a maioria das comparações vinha de pessoa que não se preocupavam com a real história, de toda forma até o próprio Lucas odiava a ideia, sempre que podia debatia com alguém que os chamavam assim.

 Lucas sendo mirado por vários olhares que o cercavam, julgavam e acusavam, estava mantendo a sanidade por um único fio, qualquer outro homem em seu lugar, teria desmoronado, o menino que foi obrigado a se tornar homem, engolia o medo, de forma tão natural quanto respirava, ainda sim, o pensamento não lhe saía da mente, "me sentiria mais seguro na jaula de leões com fome", e de certa forma estaria. Cada um daqueles pares de olhos, não davam a mínima para o que de fato havia acontecido, nenhum deles segurou uma arma, andou no campo de batalha, ou carregou a morte nos braços para entrega-la a outro homem, eram apenas burocratas, julgavam e pronto, aquele menino não conteve o jorro de raiva ao imaginar, que seria muito provável que nenhum daqueles homens teria visto uma das execuções que teriam decretado. "COVARDES"

_ senhores, início minha defesa perguntando, quantos dos senhores já se envolveu em combate direto?

 Lucas puxou fundo o ar e soltou de vez as palavras em sua garganta, como se de alguma forma, se ele parasse, talvez elas não saíssem mais.

_ tenente, por acaso tem intenção de presumir que não estamos aptos a julgar suas ações? O senhor é um louco senhor Lucas, o fato de não ter cometido um ato, não nos torna menos capazes de julgar a sua natureza, ainda mais quando estes atos estão terminantemente proibidos por lei, com isto dito, devo alerta-lo que os atos os quais esta sendo julgado, são os resultados, e os meios utilizados nestas ações, ou seja, o senhor esta sendo jugado pelo assassinato de um oficial ao qual se resultou o tal combate bem como as praticas profanas utilizadas para atingir este fim, com isto dito, se deseja aqui comparar um confronto armado com a lesão de vários civis, além de atos profanos e um assassinato intencional a um mero acidente ou defesa, está indo pelo caminho errado, tenente.

__ em primeiro, não quero comparar meu erro a nada. Hum... assassino!

 Lucas soltou uma curta risada, e manteve o sorriso olhando para as próprias mão.

__ ganhei esse nome dos senhores, eu tinha 16 anos, é engraçado me acusarem com tanto ódio me chamando de algo que me ensinaram e treinaram para ser, dizem "artes profanas", o'que arduamente fui forçado a pesquisar, resgatar, coletar, ler, estudar, memorizar e em muitos casos aprender a reproduzir, durante uma vida toda, e eram vocês quem me davam essas aulas. Porque sou eu que estou aqui por aplicá-las com a finalidade da minha sobrevivência? Porque sou eu quem está deste lado? Se vou ser julgado por isso, acho que seria bem mais justo se fosse qualquer um dos civis da cidade, uma criança até, caso contrário, deveríamos inverter os lugares.

 A voz de Lucas era calma e trêmula, ele nunca havia visto desta forma, mas ali agora, os pensamentos lhe vinham à mente, e era tudo verdade, não fazia sentido aquele julgamento, porque ele estava sendo julgado por ter feito o que foi treinado para fazer? Talvez pela mesma razão que sacrificam o cão quando ataca alguém, ao invés de sacrificar o dono.

__ já basta! O senhor agora nos culpa pelos seus atos? Nunca vi tamanho desespero e desrespeito juntos, o caminho o qual o senhor está traçando o empurra cada vez mais a um abismo. Tenente Lucas, estou nesta corte a muito tempo, já vi inúmeros esquadrões como o do senhor, para mim são foras da lei, sem uma clara cadeia de comando, com conhecimentos obscuros, ações secretas, missões não registradas, basicamente qualquer traço de informação sobre as ações do seu grupo, leva a um beco sem saída, na pratica senhor, oficialmente sua divisão nem existe, os senhores são fantasmas, era questão de tempo até um de vocês cometer algo deste tipo, o senhor e sua divisão são uma ameaça direta a estrutura e fundamentos da nossa ordem, sendo assim, gostaria de pessoalmente dirigir um inquérito para conseguir o mais rápido possível o desmembramento e destituição desta unidade, e a exoneração de todos a ela pertencentes.

 Um dos membros do terceiro nível, falou em voz exaltada, impondo toda sua autoridade. No peito de Lucas a raiva irrompeu, já não bastava ser julgado por um crime de forma errada, ainda usavam isso como desculpa para acabar com toda uma divisão dos mais nobres soldados. Ele não podia aguentar isto.

__ não...

 Gritou Lucas a plenos pulmões

__ minha divisão não tem culpa por meus atos, eu matei Emanuel, exijo ser julgado separadamente e que meus atos não pesem sobre os mesmos.

__ senhor lucas, atenha-se aos fatos, meu colega errou ao querer relacionar sua divisão a este julgamento. Esta seção diz respeito ao assassinato de Emanuel de Nazaré, o qual creio eu, o senhor acaba de confessar.

A vós desta vez era mais calma mas trazia um tom irônico e sádico.

__ não, de forma alguma! É com grande pesar que admito ter matado Emanuel, mas de forma alguma foi um assassinato.

 O nervosismo de Lucas era evidente, assim como as lágrimas que jorravam pelo seu rosto.

 Emanuel de Nazaré treinou praticamente todos das divisões de elite, isso incluía Lucas. No auge de seus 72 anos, era um dos mais velhos veteranos de guerra ainda na ativa, sempre se recusou ao uso dos avanços biológicos para se manter em forma, o que despertava a admiração de Lucas. Lucas sentiu seu peito apertar e o coração quase parar ao se lembrar das missões junto às forças expedicionárias ao lado de Emanuel, e do amigo rindo do garoto novato que mal sabia colocar o broche de tenente no início da carreira, como um pai, foi Emanuel que o agarrou pelo colarinho e o empurrou para a sala de cerimônia ao ver o garoto escondido com vergonha pois não tinha ninguém para receber a patente com ele como mandava o protocolo, e assim como o fez com os mais de 42 oficiais sobre sua responsabilidade, o homem que os enxergou mais do que soldados, os encheu como criança, como órfãos da guerra, como filhos, vieram com pesar a memória das palavras: "você vai me ganhar uma hora garoto, uma hora eu fico velho, aí você me pega".

__ o senhor alega então legítima defesa, senhor Lucas? E quanto ao uso de artes profanas?

 Demonismo, bruxaria, magia negra e uso de manipulação de matéria em público?

__ eu me envolvi em combate direto, fui obrigado a usar todo meu conhecimento, meu adversário era mais habilidoso e experiente do que eu, afinal, ele me ensinou tudo que sei. Não havia outra escolha, tive que usar tudo que pude, não para ganhar, mas apenas para me manter vivo, e consegui por pura sorte.

__ ate as artes proibidas? Se bem sei, todos os combatentes estudam sobre magia, porém apenas as divisões de elite aprendem a usá-la, ainda sim não tenho conhecimento do ensino das artes profanas, seu uso estudo e difusão, são completamente proibidos dentro dos muros desta nação. Sinceramente senhor, eu não vejo por que arrastar ainda mais este julgamento, no que depender de mim, eu já o declararia culpado. Diga-me senhor Lucas, como uma missão de escolta, acaba no assassinato de um dos membros mais condecorados da ordem?

 Lucas demorou em perceber, mas desta vez a voz vinha de um dos homens de capuz a sua frente, era difícil de dizer, pois a sua voz era idêntica a dos outros nas cadeiras, mas ainda dava para ver seus lábios se mexerem para confirmar a certeza de onde vinha a voz.

__ foi tudo descrito no relatório.

__ sim, detalhadamente, porém ainda sim, gostaria de ouvir de sua própria boca, e creio que este tribunal partilhe da mesma vontade.

 Lembrar-se deste dia era reabrir uma ferida, e está ferida incomodava, ainda era bastante recente para sangrar.

__ eu recebi uma solicitação na quarta-feira, especificando os detalhes da missão. Era estranho para mim, nunca fui em uma escolta, no geral sempre sou designado para combate, resgate ou contenção. A minha missão era simples, ir até o laboratório Adrenos, localizar o funcionário 1408 e trazê-lo até a corte. Às 19h00 da sexta-feira cheguei ao laboratório, estava vazio, vasculhei todos os setores, e não achei ninguém, antes de sair fui até a sala do servidor central, tentar localizar os registros de saída, a fim de saber que horas havia saído o último funcionário, ao entrar na sala me deparei com um suspeito armado com pistola de deslocamento, vestia um colete balístico e uma máscara de gás, ao me ver ele disparou, eu revidei, entramos em combate, quando dei por mim, estava com o corpo do homem mais próximo de um pai que já conheci, morto em meus braços.

__ tenente, o senhor foi o primeiro a participar do projeto "Lazaro", se li bem os relatórios, este projeto consistia em reparar danos corporais severos e dar a seu paciente capacidades físicas mais ampliadas.

 O segundo homem de capuz tinha a voz mais aguda que a do primeiro, e mal deixara Lucas acabar de falar já o atacava, deixando-o confuso e com raciocínio embaralhado perante a troca súbita do assunto abordado.

_o projeto Lazaro? É bem mais do que tinha nos relatórios acredite padre!Lucas dirigiu a palavra de forma bastante sarcástica, ao homem o qual ele lembrava agora deveriam ser padres como dizia o regulamento das sessões, qualquer julgamento que tenha como acusação o descumprimento de uma das leis diretas da ordem, devem ser acompanhadas pela presença de dois padres.

__ os relatórios estão incorretos, tenente?

__ não monsenhor, eu diria apenas inconclusivos. Não vejo onde quer chegar.

 O homem tinha voz mansa, porém pesada, e andava pela sala dando voltas ao redor de Lucas, porém com a cabeça sempre baixa de forma a esconder seu rosto.

__ tenente, a divisão EBCE foi criada juntamente com o projeto Lazaro, sua funcionalidade era cumprir missões até então consideradas de grande risco, o senhor e todos os membros de suas divisões, foram treinados e ensinados para isso, além de terem sido dotados de maiores aptidões físicas, força, reflexos, inteligências e imunidade a vários tipos de doenças, vírus e venenos.

 O padre parou bem na frente de Lucas e se virou para os juízes do tribunal, dando as costas para o tenente.

_a meu ver, este homem foi corrompido pelo poder, o projeto Lázaro, o colocou acima dos outros em questões físicas, as regalias dadas a divisão EBCE, colocam todos eles acima das leis militares, ficando abaixo apenas da própria ordem, confiamos poder demais a um homem, e ele se voltou contra os seus, simples, já vimos isso antes.

 O coração de Lucas gelou com estas palavras, a acusação era demais para ele, Lucas nunca quis estar acima de ninguém, foram os médicos da ordem que o fizeram assim, não era escolha dele, os capacidades dadas a sua divisão deveriam ser desta forma, aliás eles mantinha a ordem até mesmo dentro das próprias forças militares, tinha que ter posição além das divisões comuns.

__ monsenhor, por favor, não diga isto, eu nunca me vi acima de ninguém, eu sou apenas um homem sob os comandos divinos, eu apenas cumpri uma missão, e me defendi de um desconhecido, só depois de matá-lo vi que havia cometido o pior erro de minha vida. EU FUI UMA VITIMAAAAA!

 Lucas deixou a fúria escapar de seu peito, não havia meios para sutileza, as acusações tornavam-se cada vez mais pesadas, e mostrar-lhes a verdade não adiantava mais, ela deveria ser escancarada, e revelada a plenos pulmões.

_1º tenente Lucas Exéquias, contenha-se, não iremos admitir suas erupções de raiva aqui.

 A voz feminina de novo.

__ viram? Este homem e uma ameaça, é um barril de pólvora, uma arma em potencial. Ele matou o homem que o adotou como filho, e só questão de tempo até que cometa outro crime.

 O outro padre que ate então estava parado, se pronunciara pela primeira vez, e já fora suficiente para que Lucas ganhasse raiva dele também, ambos os padres eram como cobras, só abriam a boca para inocular veneno e devorar suas presas.

_eu estou aqui por quis servir esta ordem, eu recebi uma missão do meu mentor, e procurei cumpri-la, sem questionar, sem hesitar e sem temer, em nome da santa ordem.

__ A missão da qual o senhor se refere, não tem registros nos arquivos, este tribunal não conseguiu recuperar nenhum dado ou ordem direta do general Emanuel, desta escolta que deveria ter feito.

 Um dos juízes do 3º nível colocou uma pasta na mesa ao pronunciar as palavras, ao abri-la, não havia nada, nenhuma página foto ou arquivo, nada. A calma ia chegando a Lucas, mas era uma calmaria cruel, como aceitação de morte, quando se vê em alto mar, e nadar já não adianta mais.

__ excelência era uma operação secreta, o funcionário 1408 era uma testemunha de um crime político, assim não foi dada nenhuma ordem oficial.

 O padre que havia se virado para os juízes, se virou de volta para Lucas, e suspirou fundo, como alguém que já estava cansado de prolongar tudo aquilo.

__ então o único indivíduo que poderia comprovar a legitimidade desta operação foi morto em combate, é isto mesmo tenente?

__ não monsenhor, morto não, assassinado, de forma precisa e planejada, eu fui a ferramenta..Lucas olhava tão diretamente para um dos padres, que quase poderia perfura-lo com o olhar.

__ tenente, o senhor alega inocência, mas o general não morreu de causas naturais, se o senhor é inocente dos crimes que está sendo acusado, a quem atribui a culpa?

 O juiz com a pasta se pronunciara mais uma vez, de todos ele parecia o mais imparcial, ainda sim despertava nojo em Lucas.

__ ofensores!

 Lucas falou baixo e suave, como se estivesse falando de um inimigo muito temido.

__ ha há... Tolice, não temos notícias de ofensores a mais de 50 anos, e não a relato de nenhum deles desde a construção das muralhas, se fosse este o caso, ao menos teríamos tido um alerta.

__ eu sei o que vi.

__ isso só pode ser obra de sua loucura tenente. Não é concebível a ideia de um ofensor ter atravessado as muralhas, e ainda por cima sem ser notado, não existe nem nunca existiu ameaça de ofensores. Não será por meio desta premissa que irá se salvar tenente.

__ eles estão perto, eu estive fora da cidade, eu vi nos desertos...

__ os desertos são um refúgio para foras da lei, e imorais, são terras estéreis cheias de radiação, apenas isto.

 O debate entre Lucas e o juiz que segurava a pasta, perdurava, como se houvesse apenas os dois no tribunal.

__ eu me dediquei a esta ordem, eu dei tudo que tinha para esta cidade, eu e minha divisão, já fizemos mais por esta cidade do que qualquer um dentro dela, e ainda sim será me negado o beneficio da duvida. Os atos que fui capaz de...

 A voz de Lucas tremia, e suas palavras saiam entre dentes cerrados, sua fúria iria mais uma vez explodir, e não só ela, toda sua mágoa, tristeza, ódio e rancor viriam juntos, suas lágrimas eram o anúncio, como a fumaça que anuncia a erupção antes do jorro de lava incandescente em um vulcão.

__ todos nós estamos cientes de suas realizações tenente, e o senhor tem nossos profundos agradecimentos.

__ eu imploro, me permita provar o que digo, me deem mais tempo!

__ deve entender uma coisa senhor Exéquias, o poder da ordem aqui é absoluto, e todos são julgados da mesma maneira, um padre, um soldado, um carpinteiro, homem ou mulher, e os cidadãos têm fé na capacidade da ordem de julgar e condenar os culpados para protegê-los, não será o senhor que irá abalar esta fé com julgamento concedendo uma exceção.

__ fé baseada em segredos!

__ questionar a corte é questionar diretamente a autoridade da ordem, isso será considerado um ato de agressão a santa ordem, assim sendo o senhor será considerado culpado, será cortado da ordem e excomungado pela igreja! Aqueles que estão de acordo ergam a mão.

 Ao ver a cena a sua frente, Marcos soube de imediato do que se tratava. Involuntariamente deixou o holograma do corvo cair de sua mão, como se aquela visão fizesse uma descarga elétrica atravessar todo seu corpo. Em um único movimento Marcos já estava nas escadas e começara a desse-las com a maior velocidade que podia, antes de seu 3º fôlego já estava ao final da mesma, e antes mesmo de se colocar no campo de visão dos juízes gritara a plenos pulmões.

__ parem... Parem esta votação!

__ como ousa? O que pensa que esta fazendo?

 Um dos padres se dirigiu até Marcos, e se pôs em sua frente, interrompendo seu percurso até Lucas

__ senhores, reconheço a gravidade dos atos que estão sendo julgados aqui, porém acredito estar havendo uma precipitação? A sessão de julgamento não deve ser presidida acusando e avaliando a defesa do acusado, perante isso os juízes devem se colocar em retiro e avaliar o material adquirido? Vocês não podem realizar um julgamento e dar o veredicto em menos de 2 horas.

 Todos os juízes se levantaram em protesto, por mais que Marcos estivesse certo, não poderia de forma alguma interromper uma sessão em andamento, e muito menos questionar uma decisão direta do tribunal.

_quem o senhor pensa que é para nos dizer como devemos presidir esta sessão? O senhor esta perante os juízes da corte marcial da cidade Ω, exijo respeito. Contenha-se ou serei obrigado a dar-lhe ordem de prisão por desacato.

 O padre a frente de Marcos falava em tom autoritário, com fúria, Marcos não deixou de notar arrogância, com toda certeza aquela raiva não era por questionar a ordem do tribunal, e sim a autoridade do padre. Ainda sim ele não deixaria de defender seu amigo, seu único irmão em vida, não importasse a fúria dos juízes ou dos padres.

__ os senhores estão descumprindo os parâmetros do...

 Um estrondo ecoou por toda a sala. Lucas estava com a mão fechada em um punho cerrado, em um ponto onde o metal da pequena divisória de contenção se afundava sob sua mão.

__ já basta Marcos! Este julgamento foi realizado para julgar meus erros, não irei admitir que você seja condenado aqui também. Vá para trás e cale-se.

__ mas isso está incorreto...

__ calado! Pedimos que se retire senhor Marcos, o senhor está perturbando e tornando inviável a continuação desta seção.

 O padre diante de Marcos aumentou o tom de sua voz até quase estar gritando, ainda sim ele não moveu um dedo, aquele homem assim como Lucas já enfrentou perigos reais, e um padre gritando a sua frente não iria fazê-lo se quer piscar.

__ já chega capitão Marcos, foi avisado, o senhor será detido por perturbação desta seção.

 O padre deu um passo atrás e pôs a mão dentro do roupão, retirando um pequeno objeto semelhante a uma caneta, pressionou uma das extremidades e logo em seguida um ser estranho entrou pela porta. O ser era uma figura humanoide com mais ou menos 2,50m de altura e muito esguio porém com traços femininos, pele azulada e lustrosa. Mas o que a dava maior estranheza era a presença de uma cauda comprida e ausência de rosto, a criatura trajava uma espécie de vestido simples e solto, que descia reto de seu pescoço até abaixo dos joelhos, não era muito mais que dois pedaços de tecido completamente abertos na laterais, sua pernas era exibidas pelas aberturas da roupa conforme andava de forma sinuosa, revelando membros inferiores musculosos porém ainda esguios, como um felino selvagem, suas pernas finalizavam em uma espécie calçados que consistiam em cordas enroladas da altura dos joelhos ate os pês. Lucas ficou abismado ao se deparar com aquele ser, sabia muito bem até onde iam os avanços tecnológicos, mas não acreditava que a ordem permitisse isso, era uma das leis básicas da ordem não criar máquinas ou qualquer outro tipo de ser com feições humanas.

__ o que significa isto?

 Lucas olhou para o padre exigindo uma resposta, enquanto Marcos ainda mantinha os olhos na criatura.

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