Van Gogh

8 0 0
                                    


O frio tem uma solidão diferente. Tem alguma coisa sobre quando ninguém quer sair de casa, quando o ar dói no nariz. E ainda nem tá tão frio assim, parece que vai ficar mais.

A uma hora dessa, nesse frio, não tem uma puta alma na rua. Nenhum carro. É esquisito demais, aqui sempre tem um pouco de trânsito, mas agora não, só o ar gelado que dói o nariz e a mão no volante, essas porcarias de postes que não iluminam nada e a rua molhada. Eu nem sabia que chovia em Brasília essa época, mas pode ser alguma coisa de mudança climática.

Esse vento a oitenta por hora não tem condições, melhor fechar a janela e ligar o vento do carro. Ainda é estranho pensar que essa estrada leva pra São Paulo, mas talvez seja uma coisa de ter crescido em uma ilha no meio da Amazônia, onde a estrada leva... bom, pra Presidente Figueiredo. Ou Manacapuru. Quando muito, Boa Vista.

Daqui eu posso ir pra São Paulo. Eu podia visitar a vovó, podia ir agora se quisesse, em dez horinhas eu tava lá. Bom, não com o preço da gasolina. Esquece, eu vou é pra Asa Norte mesmo, e de lá eu volto. Uma hora já dá pra colocar as ideias em ordem.

Meu Deus, eu preciso limpar essa playlist, não aguento mais ouvir Back To Black.

Que rodovia é essa, mesmo? EPTG? EPIA? Não faço a menor ideia. Por que as rodovias nessa cidade não podem ter nomes normais? Coloca o nome de algum morto, algum ponto turístico, qualquer coisa é mais fácil de lembrar do que essa codificação bizarra.

Ah tá, o Setor Policial. Eu estou na Asa Sul então, preciso achar aquele veio que corta por baixo da rodoviária e vai dar na Asa Norte. Eu podia pelo menos ter ligado o mapa pra ver pelo layout onde eu tô, mas eu já fiz esse caminho umas quinze vezes, uma hora eu tenho que aprender. Eu já devo ter aprendido, é só prestar atenção.

Caralho, mas não tem ninguém na rua. O plano piloto é sempre meio vazio mas eu acho que nunca vi desse jeito, nem tá tão frio assim. Deve estar o que, quinze graus? Treze? Deve ser porque é uma noite de semana.

O bom de morar em uma cidade como Brasília é que a gente tem esse tipo de fuga. Em Manaus não tinha tanto, o limite no Turismo é sessenta, mas aqui dá pra chutar oitenta na maior parte do caminho, sem medo de ser feliz, quase não tem farol. Dá a impressão que eu podia continuar pra sempre. Dá vontade de cantar, gritar dentro do carro.

Eu estava precisando disso, sair, ficar sozinha um pouco. Minha bateria social está na reserva, acho que quando tudo acabar eu vou passar duas semanas trancada sozinha dentro do quarto pra me recuperar. Já está difícil agir com o mínimo de civilidade, é tanta coisa, tanto barulho o tempo todo, tão pouco espaço. Eu realmente não sabia quão rasa minha bateria social era, porra, deve ser uma bateria de iPhone.

Mas pelo menos eu tenho uma hora sozinha, uma hora inteira só pra mim e pros meus pensamentos, ninguém vai aparecer dentro do carro pra me perguntar sobre tapetes ou sofás ou o raio que o parta. Puta merda, como eu precisava ficar sozinha.

Porra, era essa entrada que eu tinha que pegar? Não, essa é a do... Parque da Cidade? Affe, não sei. Segue em frente, deve ter uma placa, mais pra frente, alguma dica. Se não estiver codificada que nem tudo nessa cidade.

Qual é o problema de Brasília com nomes? É tudo uma sopa de letrinha dos infernos, uma sequência de números que ninguém entende. Eu quase tinha a esperança de que chegasse alguma cartilha de decodificação de endereço com a minha primeira conta de água: Bem-vinda a Brasília, é assim que a gente entende essa zona. Porra nenhuma.

Eu acho que era aquela entrada. Merda. Tem quebrada pra esse lado? Deve ter alguma. Deus, protege a anta da tua filha de ir parar na biqueira.

Mas também, as entradas aqui são todas iguais, e no meio da faixa expressa não tem muito como ficar marcando as lojas ou igrejas ou o que quer que seja pra me situar. Onde será que eu vou dar se eu continuar aqui? Não, mas deve ter uma placa. Eu devia ter prestado mais atenção nas aulas de geografia do DF, pelo menos teria uma noção de onde eu vim parar. Mas se eu não sair da rodovia, não tem problema né? Oitenta por hora, sem semáforo, tá sussa.

Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora