Fome. Prazer. Morte.
O som suave do sangue correndo pela artéria do motorista fazia um ótimo trabalho com os instintos de Saara. A moça tinha o corpo recostado no assento traseiro do Uber a pelo menos 3h e estava em seu limite. Na verdade, o senhor de cabelos quase totalmente esbranquiçados só estava vivo por mérito próprio.
Desde o momento em que a bela e pálida moça tinha revelado seu destino, o pobre motorista não tinha mais parado de falar. Contando histórias de como sua corrida era estranha e o lugar assustador, compartilhando com a jovem de olhos frios as mais assustadoras lendas que assombram o destino da moça. Saara o teria feito se calar, mas o falatório a distraía da vontade de secar a delícia que ele tinha nas veias.
—É chamado de Cemitério de Trens, tem quem diga que dá pra ouvir os lamentos das almas que se foram. As pessoas nunca vem pra esse lado, é a primeira vez que faço uma corrida para cá em todos os meus anos de carreira. Tem certeza de que não errou o endereço, querida? — Perguntou preocupado ao estacionar na entrada da estação, se virando para encarar Saara de frente.
Ela, porém, se limitou a concordar, entregou as notas para o moço e abriu a porta. A luz da lua a recebeu como sempre fez durante sua curta vida, ela sentiu a pele fria arrepiar diante ao carinhoso toque prateado e uma súbita vontade a preencheu, com o sorriso mais doce que possuía, ela o encarou nos olhos.
—Não se preocupe senhor, as almas dos que já foram não me farão mal, elas na verdade guardam meu corpo em algum lugar dos trilhos, talvez você possa vir me encontrar algum dia. — Finalizou antes de sair.
O olhar horrorizado do senhor quase fez Saara se dobrar e rir. Ela sabia que era lindíssima, sempre fora, antes mesmo de ser abraçada. Possuía desde a nascença uma doença genética nomeada de albinismo, tanto sua pele quanto seus cabelos eram esbranquiçados e serviam de moldura para seus fascinantes olhos de gelo. Mas o renascimento tinha mudado sua essência, e de uma fascinante flor ela passou a ser assustadoramente bela. Uma aparência tão hipnótica que fazia com que o medo partilhasse presença com a admiração.
O motorista se apressou em ir embora, quase subindo em uma das calçada. Saara teria suspirado se seus pulmões funcionassem. Ela sabia que era cedo para baixar a guarda, mas esta era a primeira vez que estava sozinha, teria ficado muito feliz, aliviada, se ao menos conseguisse. Seu interior era tão inanimado quanto seus órgãos, ela sempre se sentia silenciosa e vazia, se pudesse descrever seu sentimento agora, seria como uma goteira dentro de uma caverna, preenchendo o espaço quieto com algo que ela ainda não tinha reconhecido.
Ela havia suportado 11 anos de humilhação, usando os métodos mais vergonhosos possíveis, mas Saara não se arrependia, ela se arrastou pelo inferno desde muito nova e sobreviveu. O abraço a condenou a mais 15 anos de sofrimento, sob o manto do homem que arrumou sua vida humana, a matou e prendeu em um corpo eterno de pecado. O desejo de devolver duplicado todas as décadas de tortura eram o combustível que mantinha Saara funcionando.
O silêncio a puxou de volta para a realidade, não estava mais na Arábia Saudita, o deserto de areia não a continha mais, Jaspier já não podia tocá-la. Saara se permitiu relaxar, não pensaria nisso por enquanto, estava aqui agora. Estava segura por enquanto.
A noite cobria cada centímetro, mas seus olhos podiam ver a vegetação dominando o cimento, se enroscando nas imensas locomotivas, abraçando os diversos vagões. O lugar era realmente abandonado e assustador, o que causou uma boa impressão na moça. Ela se adiantou até a entrada da ferroviária e mesmo seus olhos não humanos eram enganados pelo breu.
Ela teria entrado, teria se unido ao escuro que a acolhia se seus sentidos não tivessem captado o movimento. O vulto passou tão rápido que Saara só pôde perceber devido a atenção que mantinha, pronta para o recém chegado, ela se virou.