Adrenalina, ou epinefrina, é um hormônio produzido pelo corpo humano para manter o corpo alerta em situações de medo, luta, fuga ou excitação, ou seja, é uma medida de segurança e um mecanismo extremamente necessário para a sobrevivência da espécie humana. Algumas pessoas, entretanto, sentem que precisam da adrenalina para continuar vivendo. Outras sentem pavor de pensar nas situações em que ela é necessária. Temo que me encaixo no primeiro grupo. Em uma contradição sem tamanho, sinto que preciso arriscar minha morte para dar continuidade à minha vida. A necessidade contínua de sentir o alívio se espalhar por meu corpo ao perceber que a adrenalina corria em minhas veias e eu continuo vivo. Por isso estou aqui de novo.
Casino Royalty, uma casa de apostas diferente de tudo que já encontrei em minhas andanças nesse mundo grande demais para ver por inteiro, se tornou minha segunda casa depois de me oferecer o gatilho de adrenalina que eu tanto procurava quando deixei minha família para trás há tanto tempo que parei de contar os anos. Aqui as apostas são diferentes. Não se aposta dinheiro, não se apostam bens. Não. Aqui o buraco é mais embaixo, o lucro é sair vivo. Ou não. Se eu sair vivo hoje, é porque alguém morreu em meu lugar. O mesmo vale para amanhã, para o dia seguinte, para o dia que vem depois e todos os outros que virão depois dele. E em algum desses dias, a pessoa que sairá viva não serei eu.
O pensamento me acende um fagulha e a ansiedade se espalha por meu corpo, era meu décimo quinto dia marcando presença no casino. Décima quinta vez que entro vivo, percebo, arrisquei catorze vezes antes de hoje e venci a morte ao acaso. Qualquer um se sentiria poderoso depois disso.
"A morte não é tão assustadora quanto parece", "Sou bom demais para morrer hoje", "Alguém está me poupando", esses pensamentos reverberavam em minha mente depois de sair vivo mais um dia. Em algum momento passei a me sentir e ser conhecido como Sísifo, o homem que enganou a morte mais de uma vez. O apelido causa efeito e as pessoas abrem espaço para eu passar quando chego ao Royalty, ansiosos para ver como eu fugiria da morte dessa vez. Também não sei como faço isso, mas faço. Sobrevivo, de novo e de novo, contra todas as chances.
As regras do cassino são simples e claras: um, a escolha de apostar é sua, portanto, apenas você deverá lidar com as consequências se perder; dois, o jogo da noite é escolhido aleatoriamente e é sempre algo que depende de sorte; três, os perdedores devem pagar com a vida. Não havia escapatória. O jogo decide quem, como e quando alguém vai morrer. O de hoje, entretanto, era o mais simples possível: um dado, duas pessoas, o maior número ganha e o perdedor morre. Como eu disse, simples.
Um sorriso confiante se apresentava em meus lábios. Meu adversário não parecia tão tranquilo, eu podia notar suas mãos tremendo no meio do círculo de pessoas que se abriu para observar a aposta do dia. O olhei com pena, parece que Sísifo se sairá bem mais uma vez, pensei. As pessoas estavam animadas. Apostadores arriscavam altas quantias de dinheiro apostando em mim, afinal, nenhum casino que se preze tinha apenas um jogo, certo? Enquanto eu apostava a vida em um jogo de vida ou morte, os espectadores apostavam em minha vida ou morte. Covardes, se quer saber minha opinião. A adrenalina de correr risco de vida era muito melhor do que alguns trocados a mais no bolso, ainda mais no meu caso que não tinha como ou quem gastar. Não, a aposta de tudo ou nada é o que vale a pena para mim. Naquele dia em específico, quando a carta foi sorteada, lembro de como me senti empolgado. A carta tinha poucas palavras, mas era o suficiente, as instruções eram claras: Dados, maior número, tiro. A carta, um ás de copas, se não me falha a memória, detalhava qual tipo de morte eu teria que vencer.
Sorri, dados eram os meus favoritos. Olho mais uma vez para o meu adversário. Era um jovem, devia ter metade da minha idade no máximo, magro e assustado. Os gritos das pessoas empolgadas pareciam aumentar seu nervosismo e seu medo, como se o som fizesse tudo parecer mais real, e o analiso com mais cuidado. Não sei o que o levou a tal situação, mas sei que tem mais a ganhar do que a perder com isso. É sempre assim. Aquele que não perde a vida ganha dinheiro e reconhecimento, ambos os atributos são importantes para qualquer um que queira mudar de vida nesse mundo podre. Sei que sou a exceção à regra, eu quero a adrenalina, o que vem junto com isso é apenas um bônus.
O crupiê chama nossa atenção e os espectadores se acalmam e fazem silêncio, ansiosos pelo resultado de nossa coragem ― ou burrice. O homem rechonchudo e sorridente nos entrega dois dados para cada, um branco e um vermelho, explicando as regras que já sei de cor e confirmando nosso consentimento antes de iniciar as apostas. O jovem em minha frente engole em seco e segura os dados como se cada um pesassem uma tonelada, entendo seu sentimento, aqueles dois dados tinham o poder de mudar ou tirar sua vida, imagino que o peso para alguém que se importa e que teme morte seja imensurável.
Com um jogo simples de cara ou coroa, meu adversário é sorteado para começar a diversão e, olhando do meu lugar na outra extremidade do círculo, percebo suas mão tremendo antes de jogar ambos os dados para cima de olhos fechados. Os dados caem e o crupiê se aproxima, anunciando os resultados: seis no dado vermelho, três no dado branco. Não foi um resultado ruim, as pessoas prenderam a respiração ao ver que eu não estava condenado. Minha sorte ainda podia lutar.
Com um sorriso, lancei os dados casualmente, como se minha vitória fosse garantida. Eu devia saber que não era. Sim, Sísifo enganou a morte duas vezes, mas acabou preso do mesmo jeito, condenado a empurrar uma pedra para o topo de uma montanha por toda eternidade. Eu conhecia o mito melhor que todo mundo, eu não imaginava, entretanto, que o fim dele também se aplicaria a mim. Depois de catorze tentativas bem-sucedidas, a décima quinta falhou e decretou meu destino. Sísifo não consegue mais fugir da morte.
Meu nome não importa, meu passado não importa, quem eu sou não importa. Das portas do casino para dentro, eu sou Sísifo e agora Sísifo está morto.
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Encarnação de Sísifo
Truyện NgắnO casino Royalty era um lugar diferente. Um lugar onde se arrisca o tudo ou nada, onde pessoas apostam suas vidas.