Realmente não o vi mais.
Durante o resto da semana, pelo menos.
Embora seja um curto espaço de tempo, pergunto-me se não o vi porque não calhou ou porque conseguiu esconder-se de mim.
Ele esteve naquele funeral sem mostrar os seus olhos, e estava no momento em que aquele homem foi morto sem mostrar a sua presença, isso quer dizer que pode estar ao meu lado neste momento e eu posso simplesmente não o conseguir ver.
A ideia provoca-me imediatamente um arrepio.
Não sei qual prefiro, vê-lo, sabendo que os outros não o conseguem fazer e que ele é tudo menos humano, ou deixar de o ver e arriscar que as suas mãos estejam quase a tocar-me na pele.
Acho que odeio ficar na ignorância.
Ele adora desaparecer, adora fugir às questões, adora deixar as explicações para nunca.
No funeral, perguntou-me se o conseguia ver, se via a cor dos seus olhos, e quando disse que sim, a sua resposta foi revelar-me que tinha pouco tempo de vida. As coisas podem estar conectadas, só as pessoas que têm pouco tempo é que o conseguem ver? Porquê? Qual é a razão?
E agora que me informou que deixaria de o ver, quer dizer que estou fora de perigo? Com certeza foi porque me salvou daquele homem, o Dayan disse que ele seria castigado.
O que raios é ele?
E como pôde deixar-me sem absolutamente nada para além das minhas memórias que pareceriam loucas se as contasse a alguém?
Não contei sobre a noite que passei a ninguém, nem à Inaya, que parece mais deprimida a cada dia que passa, e muito menos à minha mãe, que me liga todos os dias e pensa que estou nas nuvens por estar aqui, quando tenho tido pesadelos todas as noites.
Acordo todas as manhãs a puxar por ar, com um sonho repetido de estar a sufocar em sangue. Quando levo as mãos à garganta tenho pele a cair aos pedaços, a desfazer-se em pó, deixando que o sangue escorra até formar uma poça ainda maior que a do homem. Transforma-se num mar que me afoga, que não para de crescer e de me puxar para o fundo.
No final do mesmo filme, todas as noites, volto à manhã encharcada de suor, sem fôlego, com vontade de gritar e de chorar.
Vi alguém perder a vida, e acho que a ficha só me caiu no dia seguinte, quando já não temia pela minha vida, nem tinha o Karán para fazer perguntas. O mistério e a magia foram-se e deixaram para trás uma menina assustada que acabou de testemunhar um assassinato, que foi ferida, perdeu sangue e foi salva por um rapaz.
Não sei como lidar com isto, não quando as imagens aparecem de tempo em tempo sem que as chame, entram pelos pensamentos e pausam tudo o que me rodeia, concentro-me apenas neles, e deixo-me cair num transe que apenas um toque brusco ou uma voz alta consegue trazer-me de volta.
Acho que são essas imagens e esse trauma que me trazem aqui, ao exato sítio onde estive naquela noite, onde vi aquela cena que me marcou tanto que não me deixa dormir, onde fui atacada e tive um medo real de morrer.
O homem que o matou foi preso, encontraram-no não muito longe de onde tinha assassinado o senhor, afinal, ele era o dono daquela tasca, por isso não estava lá mais ninguém naquela noite.
Isso quer dizer que encontraram o corpo.
Então quem era aquele que saiu do beco com o Karán?
Eu vi exatamente quem era, as suas roupas ainda estavam ensanguentadas, naquela altura pensei que ele o tinha ressuscitado. Estavam a sorrir, não foi uma ilusão, sei que o vi.
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Eco da Morte
HorrorNo reino das sombras, entre a vida e a morte, um misterioso ceifador com olhos cor-de-laranja sombrios encontra-se cativado por uma mortal que foge da sua aldeia calma para experienciar a cidade que nunca dorme. Embora afetado pela inevitabilidade...