Ronda de Segurança Contra Incêndios

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As portas corta-fogo têm que ficar fechadas. Sempre. Caramba, tá escrito na porcaria da porta, qual é a dificuldade de puxar essa merda até fechar? Não leva dois segundos, pô, questão de segurança mesmo.

Mas não, toda vez que eu subo pelas escadas de emergência do prédio eu tenho que sair fechando as portas corta-fogo porque as pessoas são preguiçosas pra caramba. É a minha própria ronda de segurança contra incêndios.

Calma, eu não sou doida ou paranoica nem nada disso.

Se bem que eu tive uma fase de fixação absurda com o Edifício Joelma, mas quem não teve né?

A subida de escada é a parte final do meu treino, então três vezes por semana eu faço esse cardio, subindo os vinte e um andares de escada quando volto da academia. É um ótimo momento pra ouvir o Projeto Humanos da semana, ou algum podcast de true crime, às vezes algum documentário interessante, que nem aquele do Fyre Festival. Também é um bom momento para fazer a ronda de segurança contra incêndios.

Eu nunca morei em prédio antes, então não tenho certeza, mas parece que aqui no meu condomínio o pessoal usa muito mais a escada de incêndio do que eu imaginaria, até nos andares mais altos. Vários andares têm marcações especiais nos patamares, tem a marca de fogo ou tinta preta - a definir - do 14º, o pinguinzinho macabro do 6º, e esses são só os fixos. Além deles, às vezes aparece a eventual garrafa pet segurando a porta aberta no 7º, uma ou outra barata morta, mas são bem raras, e a equipe de limpeza logo tira.

É surpreendentemente limpo e bem mantido, se levar em consideração que não tem câmeras. Mesmo nos andares mais altos eu nunca vi embalagens de camisinhas, bituca de cigarro, nada assim. Mas, como eu disse, as escadas são bem movimentadas.

Eu nunca encontrei ninguém, mas dá para ouvir gente em outros andares, mesmo por cima do fone de ouvido, então eu sei que eu nunca estou sozinha na escadaria, sempre tem mais alguém subindo.

Dá para saber a diferença entre quem sobe ou desce pelos passos. As pessoas sobem um passo de cada vez, para evitar tropeçar em um degrau mais alto, ou até para poupar energia mesmo, mas para descer é mais rápido, de dois em dois. Flap-flap, flap-flap, flap-flap.

Por isso que eu sei que quem quer que sempre me acompanhe nas rondas de incêndio está subindo também, um passo de cada vez.

"Se você não ouviu os episódios anteriores, pare, volte, e ouça em sequência."

Eu sempre começo do térreo. A academia é pertinho, dá para ir e voltar a pé, e assim eu posso passar na portaria e verificar se chegou alguma coisa, além de me inteirar das fofocas. Eu posso ter morado a vida toda em casa térrea, mas aprendi bem rápido a importância de estar nas boas graças da equipe da portaria e dessa entidade que existe em todo prédio: o Severino.

Inclusive, está chegando dezembro, eu preciso lembrar de comprar um chocotone pra portaria e um pro pessoal da administração. Será que a administração divide com a equipe de manutenção ou eu deveria comprar mais um para eles também? Eu vejo esse povo todo santo dia e nunca reparei se o uniforme deles é da mesma firma.

Mas é sexta, segunda eu presto atenção nisso.

Ah, tá aí. Flap, pausa, flap, pausa, flap, pausa.

Engraçado que eu nunca consigo pegar exatamente o momento que começa, eu já tentei até ficar em silêncio, porque eu fico curiosa para saber se é sempre a mesma pessoa, com um horário fixo que acaba combinando com o meu, ou se é uma pessoa diferente cada vez. Sem brincadeira eu já até parei uma vez, para ver se a pessoa chegava em mim, mas como ecoa muito aqui não dá para saber se a pessoa está em cima ou embaixo, só que está subindo.

E, a bem da verdade, eu tenho mais o que fazer do que ficar esperando que nem um espírito na escadaria do prédio.

Hoje o cardio tá incrementado porque eu passei no mercado depois da academia, então sem a menor condição de ficar brincando de stalker da escadaria, que tem coisa gelada na bolsa.

Pinguim macabro do sexto andar ainda aqui. Engraçado que o pessoal da limpeza não pegue.

Bom, já é estranho que o pinguim esteja aqui para começo de conversa. Minha teoria pessoal é que foi uma criança que pegou um brinquedo de um irmão mais novo e escondeu de birra. Mas ainda assim, o pessoal da limpeza não pegou para levar para a administração? Estranho.

Nada de garrafa pet no 7º andar hoje, e a porta está milagrosamente fechada. Sete andares sem nenhuma violação do código de segurança? Acho que isso é um recorde.

Beleza, 1/3 da subida já foi.

Essa escada é bem iluminada para uma escada de emergência, mas às vezes eu sinto falta de uma escotilha que pudesse abrir pra dar uma ventilada. Se bem que provavelmente não pode mesmo ter por questão de segurança, algo sobre oxigênio alimentar fogo-

O que foi isso?

Eu tive a impressão...

Pauso o podcast, mas não tem nada.

Eu achei que tivesse visto...

Foi só um truque da luz. Ou de falta de ar por estar subindo de escada. Meu condicionamento físico é bom, mas talvez eu esteja indo rápido demais, eu me distraio ouvindo o Mizanzuk falar e nem percebo.

Como que pode alguém fazer uma coisa dessas com uma criança né? E a polícia em vez de ir atrás do culpado de verdade fica tentando forçar essa história de magia maligna como se a vida fosse um filme estadunidense barato. As descrições dos supostos "rituais" chegam a ser vergonhosas de tão estereotipadas, do tipo que se eu visse num filme-

Não, agora eu ouvi alguma coisa, real.

Pauso o Mizanzuk de novo e dessa vez tiro o fone.

Dou um passo.

Flap, pausa.

Outro.

Flap, pausa.

Ah não, esse tempo todo eu achando que tinha gente subindo a escada ao mesmo tempo que eu, e eram só os ecos dos meus próprios passos. Hahaha, rid-

Flap, pausa.

Flap, pausa.

Chega, é só um vizinho. Eu estou me assustando à toa.

Quer saber, vou de elevador o resto do caminho.

Subo mais um lance, acompanhada pelo eco, ou pelo vizinho ou pelo raio que o parta. Mais uma porta fechada, olha só que bonito. Viro a maçaneta e puxo, mas a porta não cede. Puta merda, a única coisa pior que uma porta corta-fogo aberta é uma que não abre. Vou registrar a ocorrência na portaria da próxima vez que-

Flap, pausa, flap, pausa, flap.

Foda-se, eu saio no próximo andar.

Começo a subir mais rápido, e os passos me acompanham. Ele está me ouvindo correr, está correndo também. Será que é mais rápido que eu?

Nunca fiquei tão puta de ver uma porta corta-fogo fechada na vida, juro, que merda. Por que não abre?

Flap pausa flap pausa flap.

Que merda, que merda, que merda.

Não tem câmeras aqui, tinha que ter câmeras. Se ele me alcançar...

Tá aberta! A próxima tá aberta!

Saio quase correndo e amasso os botões do elevador. Vem logo, caralho, vem logo.

Flap-pausa-flap-pausa-flap.

O barulho de sininho do elevador chegando quase me faz chorar, e eu me jogo para dentro sem nem olhar.

Engraçado né, como sempre tem aquela placa que a gente tem que olhar se o elevador está no andar antes de entrar.

É, eu devia ter olhado.

Flap-flap flap-flap flap-flap.

Tá descendo. Tá vindo atrás de mim.

Espero que a queda me mate antes.

Ronda de Segurança Contra IncêndiosOnde histórias criam vida. Descubra agora