O BRILHO DEVORADOR

30 1 0
                                    


 A Costa do Paratari, região de mata fechada no interior de uma Amazônia perdida, é recanto de inúmeras histórias fantásticas. Uma dessas narrativas ouvi da boca de uma senhora que morava na região há quarenta anos. Nordestina, mãe de cinco filhos, dona Rosa contou que numa tarde de março, seu primogênito voltou da mata muito pálido, o olhar perdido e a fala confusa. Nunca cheguei a conversar com o rapaz, afinal, Dona Rosa era a única sobrevivente de sua família. Ao lembrar do filho, nas palavras dela, disse: "meu menino viu muitas visagens naquele dia terrível. As mesuras da mata avisaram antes de tudo acontecer!"




Das cenas que me causaram espanto e que me recordo quando criança, suponho que seja o dia em que abri uma panela que fumegava sobre a mesa. Ainda me recordo do caldo vermelho de urucum, de onde emergiu a mão cortada e cozida de um macaco. Era como a mãozinha de um recém-nascido. Aquilo me chocou profundamente. Jamais esqueceria tal cena de arrepiar os pelos, junto à sensação de pena e repulsa.

Para piorar, meu irmão disse, com tom de lamento, que antes do macaquinho ser morto, ao perceber que levaria um tiro, juntou as mesmas mãozinhas como se pedisse misericórdia, ou como se estivesse rezando. Pobre animalzinho! Servido a humanos famintos e desesperados. Minha mãe expressou tristeza, mas era o que havia para comer. Era o que floresta podia nos dar. Desviei o olhar daquilo.

Me recordo que dissipei minha mente através da janela de nosso casebre que emoldurava a mata lá fora. Tinha um verde tão profundo que as sombras das árvores simulavam uma falsa noite. Estava tão escuro, naquele dia, que nem era possível distinguir o céu cor de chumbo misturado àquela Amazônia perdida.

Também lembro do urro de outro mundo que ecoava distante, em algum lugar obscuro, quase a se confundir com o ruído de fome em minha barriga. Todos os seis, diante de mim, meus pais e irmãos, sujeitaram-se aos restos ossudos do macaquinho cozido dentro da panela. Como eu queria esquecer aquela cena! E não pude ficar para trás! Eu tinha fome. Comi o que restou, sentindo na boca os fiapos de carne que havia entre os dedinhos do macaco. Para mim, uma memória de horror que jamais esqueceria.

De lá pra cá, os tempos continuaram difíceis, mas nos últimos meses, as galinhas que criamos foram mortas por um cachorro do mato, as macaxeiras, milhos e bananas apodreceram infestados por alguma praga; e a pesca era parca. Viver da floresta era tarefa árdua. Todos nós sabíamos seus avisos, seus sinais de desafio. Era uma entidade que queria nos testar. A mensagem era clara: cacem e sobrevivam!

Naquela semana, eu fui o escolhido por meu pai para acompanhá-lo na caça. Podia durar dias, até voltarmos com a carne de um bicho qualquer nas costas. Rememorei quando meu pai trouxe uma anta morta e a faixa de sangue escorria em seus ombros.

Como sempre, nesse dia o sol nasceu entre nuvens cinzas, eu nem havia dormido direito, cheio de pressentimentos e medos ao pensar na floresta, ao sentir que passaria a próxima noite lá. Aquele inferno verde era uma entidade viva e assassina.

Tomei um café forte, uma tapioca e um resto de queijo manteiga para espantar a fome o quanto pudesse. Minha mãe me deu um beijo na testa e se despediu de mim, meus irmãos acenaram, o mais novos aliviados por não estarem no meu lugar.

Amarrei à minha cintura uma pequena faca amolada e uma lanterna de alumínio com pilhas velhas que eu nem sei se funcionava. Assim que calcei minhas botinas gastas, suspirei buscando um pouco de esperança para aquela jornada.

Lá fora, ao tocar as solas das botinas que partiram os primeiros galhos, folhas mortas e frutas podres, adentramos à trilha e nos distanciamos pouco a pouco de nosso casebre. A floresta me envolveu com aquele abraço úmido, quente, os ramos como pequenas garrinhas rasgando minha pele. O canto agourento de um pássaro foi a primeira coisa que escutei, era a matintaperera. Não gostei daquilo.

O BRILHO DEVORADOROnde histórias criam vida. Descubra agora