Eram 23h44, logo faltavam 16 minutos para que o dia se encerrasse sem uma única palavra escrita. Nas longas horas que se passaram, o tempo foi gasto indiscriminadamente em tarefas muito menos importantes como: se atualizar sobre as últimas notícias, ver publicações nas redes sociais, olhar para o nada e realizar tarefas domésticas. Nada que realmente cumprisse aquela missão dada a si mesmo: escrever todos os dias.
O mal do artista é o bloqueio criativo. Nessa hora, começa a se erguer uma barreira que o impede de acabar com o bloqueio criativo. Era o que estava acontecendo com o escritor naquele exato momento. Entre um copo, alguns talheres e dois pratos lavados, a louça já estava limpa. Não havia mais nada entre o escritor e a escrita, a não ser ele mesmo e o vazio literário em sua mente.
Sentou-se na varanda, observando o céu escuro com poucas estrelas. Ao fundo, o barulho do mar inebriava seus pensamentos em um ritmo constante - bem diferente dos seus dedos e suas palavras, que permaneciam inertes. Entre um balanço e outro da rede, começou a se questionar se realmente ainda havia um ser criativo dentro de si. Muitas ideias passaram pela sua cabeça, mas nenhuma parecia a melhor, a escolhida, aquela que merecia a dedicação de alguns minutos do seu dia para se tornar algo real.
Poderia falar sobre um caso de assalto que havia ocorrido na manhã daquele mesmo dia da janela de seu apartamento. Na esquina do prédio, um senhor de uns 60 anos pedalava uma bicicleta preta quando foi abordado por um jovem sem camisa, com boné de aba reta vinho e bermuda de surfista. O menino aparentava ter, no máximo, 16 anos, era magro e muito rápido. Abordou o senhorzinho com truculência e logo tomou seu lugar no selim. O desespero do homem foi grande e quando deu por si começou a entoar o cântico característico dos assaltados: "Pega ladrão! Pega ladrão!"
Deu certo. Alguns metros à frente, já na outra esquina, uma família vinha caminhando em direção à praia e tinha entre seus membros dois homens corpulentos. Ambos largaram as cadeiras que traziam nas mãos e começaram a cercar o garoto com a bicicleta. O chão foi seu destino seguinte, logo sendo paralisado e segurado por seus captores brutamontes. Do alto do 8º andar, o escritor observava tudo com olhos atentos e ouvidos afiados, tentando captar alguma grande história, mas só o que teve foi um pouco de entretenimento social, uma dose do suco de desigualdade e violência da sua cidade à beira do mar.
Mas essa não pareceu uma boa história, então foi em busca de outra.
Se não fosse sobre algo real, poderia então ser uma escrita fictícia. Quem sabe a história de um vendedor ambulante de sorvete que encontrou um potencial rival na praia ocupando o ponto que havia sido seu durante muitos anos. O rival, com sua cesta de churros, parou ao lado de um gazebo grande e conversava alegremente com novos fregueses quando foi surpreendido com uma paulada em suas costas que o fez cambalear e perder o fôlego, espalhando churros pela areia.
O golpe foi desferido pelo sorveteiro, que arrancou o cabo de um guarda-sol da praia e deu com toda a força no seu adversário comercial. A briga começou a tomar forma, com o homem dos churros se levantando e começando a fazer movimentos trôpegos de capoeira. A tentativa de um chute quase fez seu joelho torcer, mas ele conseguiu retomar o equilíbrio a tempo de desviar da segunda paulada. Era sorvete contra churros, a luta de quem iria oferecer mais açúcar para o sangue dos banhistas.
Com o caos instaurado, algumas pessoas tentavam sem sucesso parar os gladiadores da praia. Houve quem gritasse, chamasse a polícia, filmasse e até torcesse. Ninguém quis entrar no meio, afinal, a cena rendia boas doses de prazer para os curiosos. A contenda só terminaria mesmo quando o sorveteiro, na busca por fôlego, finalmente anunciasse: "Some já daqui, você tá no meu ponto de venda!" e o homem do churros, com cara de interrogação, respondesse: "Mas eu nem tô vendendo, isso é pra festa da minha filha que tá fazendo aniversário aqui na praia!". O fim dessa história seria algo como o homem totalmente sem graça oferecendo sorvetes pra família, enquanto o pai da criança era atendido pelo Corpo de Bombeiros e esperava a polícia chegar para prender o sorveteiro maluco.
Até poderia dar em algo, mas o escritor achou o enredo fraco, com personagens rasos e um conflito muito comum com um final piegas. Melhor não. Sentar-se à frente do computador e gastar seu precioso tempo para contar histórias ruins era o seu maior medo - maior até do que não sentar-se à frente do computador e gastar nenhum tempo contando qualquer história, ainda que fosse ruim.
Chegou a pensar em escrever uma página de diário, relatando os acontecimentos e sentimentos do seu dia, assim como suas inquietações. Quem sabe aquele não seria até um exercício terapêutico capaz de liberar o acesso às vias da criatividade literária que o fariam um grande best-seller?
Mas, de verdade, quem se importaria com o diário de um escritor fadado à prateleira de baixo de um sebo qualquer no fim do mundo? Já tinha tanto livro, tanto conto, tanta história por aí, que a dele precisaria fazer um esforço enorme para furar a barreira do sucesso. Depois de quase 12 anos na tentativa de se tornar alguém reconhecido, ele não conseguia mais acreditar que esse sonho seria possível. As editoras agora só queriam as pessoas que traziam legiões de seguidores nas suas costas, com pouca ou nenhuma bagagem literária, mas um nome brilhante e atrativo para as moscas que comprariam suas obras enfadonhas nas livrarias mais caras do país. Gasto desnecessário de celulose, pensava o escritor.
De tanto pensar, o escritor perdeu a noção do tempo. Eram 0h10 do dia seguinte. A escrita de ontem nunca mais poderia acontecer e a do dia atual já havia perdido seus 10 primeiros minutos de chance. Resolveu então que aquela era a hora. Levantou-se, tomou um gole de água e seguiu com passos decididos até a mesa de jantar. Sentou-se à frente do computador, alongou os braços e girou o pescoço por cima dos ombros. Abriu o aplicativo de escrita e olhou para a tela em branco por alguns segundos.
Deu sono.
Sentiu fome.
Lembrou que tinha que colocar o lixo pra fora.
Precisou se atualizar das notícias do dia (no caso, os primeiros 15 minutos do dia).
Conferiu as atualizações das redes sociais (todas as redes sociais).
Abriu e-mails.
Bebeu água.
Alongou as costas.
Não escreveu.
Estava mais uma vez bloqueando sua criatividade por não se enxergar como alguém criativo, mesmo num redemoinho de ideias e histórias para contar.
***
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Bloqueio criativo
Short StoryO mal do artista é o bloqueio criativo. Nessa hora, começa a se erguer uma barreira que o impede de acabar com o bloqueio criativo. Era o que estava acontecendo com o escritor naquele exato momento.