Deus estava do seu lado, mas os padres, não.
Gilda se sentia traída - todo ano era ela quem distribuía os pãezinhos de Santo Antônio, e tinha sido trocada sem explicação alguma por Marê. Aquela garota queria roubar tudo que Gilda possuía. Não dessa vez. Se ela não fosse incluída, então ninguém mais iria comer os pães. Queimou-os.
Enquanto saía da cozinha daquele lugar, ela não podia evitar um sorriso vitorioso. Tinha sido completamente tomada pelo orgulho, mas não se importava nem um pouco. Essa era sua pequena vingança. Porém, ao ver um garoto se aproximando, precisou fingir que não vinha da casa dos padres.
"Dona Gilda!" Ela a chamou. Era o ajudante de Sônia e Adélia no correio-elegante, o tinha visto passar correndo pela festa antes.
"Sim?" A mulher ajeitou os cabelos, ignorando o leve cheiro de queimado no ar,
"Carta para a senhora!" Entregou o papel dobrado em suas mãos.
Gilda sorriu. "Obrigada." O menino acenou com a cabeça e partiu, tão rápido quanto havia chegado. Antes que mais alguém a visse ali - dessa vez, uma pessoa que pudesse culpá-la -, ela resolveu voltar para a celebração do casamento falso das crianças ou algo do tipo, não dava a mínima. Assim que se juntou ao resto da cidade, não resistiu à curiosidade e abriu o seu correio-elegante.
'Eu acho que esse casamento matuto devia ser da gente.'
Conhecia essa letra. Imediatamente, olhou em volta por Gaspar e o encontrou já a encarando de volta com um sorriso no rosto. Ela foi até ele, lhe devolvendo a carta. "Você é maluco de me mandar isso no meio dessa festa. E se alguém lê?"
Isso só aumentou o riso dele. "Então, é um sim pra minha pergunta?"
"Claro que não, Gaspar!" Ela cruzou os braços em falsa naturalidade. "Mas que besteira! E eu nunca usaria um daqueles vestidos juninos horríveis, até parece que não me conhece."
"Conheço, conheço até demais." O gerente ficou sério, guardando o papel dentro do paletó. "Tanto que eu sei que ocê não tem mais dinheiro pra continuar vivendo no hotel naquele luxo."
Gilda deu de ombros e virou o rosto, contrariada. "E, por acaso, eu mereço menos? Na verdade, isso não é nem da sua conta."
"É o meu trabalho, uai. Mas, olha..." Ele diminuiu o tom de voz, se aproximando. "Se ocê quiser se mudar lá pra casa, eu ia gostar demais da conta de te receber."
Ela se virou para ele, surpresa, e viu que ele falava sério. Ele era inacreditável. "O que é isso? Você deu de gritar para o mundo inteiro que somos amantes, hoje? Se eu for morar na sua casa, mesmo com dona Cândida fazendo questão, só vai criar suspeitas sobre nós dois!"
"Uai, e como é que você planeja arranjar dinheiro pra pegar a estadia, posso saber?" Ergueu uma sobrancelha. "Porque a Marê tá no pé pra ocê não dever nem um tostão."
Ela sorriu. "Logo, você vai descobrir, meu querido. Pode deixar comigo, por enquanto."
De repente, ouviram gritos e notaram uma clara movimentação em direção à cozinha eclesiástica. A animação da festa se transformou em desespero. "Acudam! Está pegando fogo!" Alguém exclamou.
Gaspar franziu o cenho, se voltando para a mulher à sua frente. "O que foi que ocê fez, hein?"
"Eu? Não sei do que você está falando." Gilda cruzou o caminho dele, passando a mão por seu rosto. "Eu estava no meu quarto o tempo todo."
Ele a assistiu se afastar dali, de volta para o Grande Hotel Budapeste, e suspirou. Momentos depois, sua mãe apareceu do seu lado, olhando na mesma direção. "Aquela ali é a Gilda? Coitadinha, já foi tão cedo?"
"Já... ela nunca fica de verdade." Gaspar murmurou para si mesmo, tentando se lembrar disso. Não sabia por que ainda confiava tanto nela. Por que ainda gostava tanto dela.
Talvez, apenas talvez, fosse aquele sentimento que ele conhecia há anos e não queria admitir. Não queria manter guardado em seu coração.
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Ainda Gosto Dela
FanfictionE se o correio-eletrônico que o Gaspar mandou não fosse para a Marê?