O homem encara o espelho, que não exibe reflexo algum, apenas seguia, retratando uma garotinha, com seu gatinho filhote no colo. Ele sacode a cabeça, o espelho tornando à sua forma original. Seu olhar recai sobre o gato, já velho e de fraca coordenação motora. Realmente, se parecia muito com o filhote nos braços desprotegidos da garota.
Seu corpo se levanta, acompanhando a grande locomoção dos presidiários, que seguiam para o refeitório lotado e sufocante, o sol castigando os lastimáveis pecados da multidão.De longe se podia ouvir o som daquele telefone antigo, que tocava desesperadamente, mas que nunca era atendido. Todos apenas passavam reto por ele, sem se darem ao trabalho de sequer ouvi-lo. Os guardas o encararam ao entrar na câmara. O olharam com a mesma preocupação com que olhariam para um rato prestes a morrer em descaso e exaustão. Sua mão calejada e marcada por cicatrizes faz o sinal, assim permitindo sua entrada naquele matadouro. Teria uma boa quantia de trabalho naquele dia, assim como em todos os outros. Ele ri em repulsa.
O facão fazia um barulho horrível ao rasgar a carne, pele e ossos. Tudo iria para os pratos de todos aqueles ratos, confinados atrás de paredes cinzas, esperando a liberdade. Seja pelo tempo, seja pela fuga, ou seja pela morte. Ele limpa o suor do rosto, o sujando com sangue, o que sequer percebeu. Era hora de ir embora. Era hora de comer.
Mal comeu antes de voltar para a cela. Seu rosto cansado se enfia no colchão fino e sem travesseiro, o som daquele maldito gato esbarrando nas coisas denuncia sua entrada no local.
O peso do felino pula em suas costas, e, ao abrir os olhos cinzas, pôde ver a pequena barata sendo deixada em sua frente. Seus olhos pesam, a cabeça começa a latejar. O sono o toma por completo, e a garota passa a invadir seus pensamentos.-COVARDE! VOCÊ SABE! VOCÊ SABE ONDE ESTOU! CO.VAR.DE! VOCÊ SABE! - A garota já estava ficando rouca de tanto berrar. O homem podia sentir a própria garganta estilhaçada pelo esforço.
A menina chorava, o pescoço se decompondo sob seu olhar castigado. Seu corpinho raivoso começa a apodrecer, e, mesmo que ele não quisesse ver aquela cena, ela não parou.
Então o tempo passa em questão de segundos, a tornando uma ossada amarelada, encolhida, abandonada ao acaso. O gato se aproxima, observando tudo em seu silêncio de gente antiga, apenas observando o tempo passar, apenas ouvindo os berros intermináveis daquela garota enegrecida pela crueldade.
Mas então o animal, agora já velho, se aproxima do homem de olhos dilatados, agachado em um eterno silêncio. Ele toca no rosto do prisioneiro, que acorda.
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A Prisão De Um Cadáver
HorrorAquele gato velho e atrapalhado visitando a cela do presidiário, aquela garotinha raivosa o cobrando durante o sono, aquele telefone velho tocando no refeitório. Aquele segredo, caindo nas costas de uma pessoa inocênte, ou, talvez nem tão inocente a...