CURTA NoTÍCIA SOBRE A SOLIDÃO DAS CABEÇAS

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As bernacas quando voam, fendem o ar suas armaduras. Foram ferro aquelas plumas que hoje parecem espadas de pelúcia.


*

Jacira olhou a cabeça do seu filho, que repousava mansamente sobre os paralelepípedos. Os olhos semicerrados da criatura estavam tão sublimes que quase se fazia esquecer a ausência do seu corpo. O sangue aguando a dureza da rua Aluísio Azevedo. Começara a se formar em volta da hedionda cena uma pequena multidão de curiosos. A jovem mulher não se aguentou de pé, e rompeu em choro e gritos ao perceber que seu filhinho, que há pouco iniciara a vida, estava ali, morto. O espírito de um Cabeleira qualquer teria passado pelo pescoço de sua criança, de quem cujo único erro que se tinha notícia era o da própria origem. Os miolos pareciam escorrer da garganta.

As mulheres que se aproximavam da cabeça, compadeciam-se, pela primeira vez, da Jacira. Os homens se entreolhavam, e compartilhavam todos uma dor implícita, tácita como uma alma. Ninguém viera abraçar a pobre mulher, que agora agarrara a cabeça da criança e, em meio às lágrimas e qualquer coriza que lhe escorria do nariz, beijava a testa sem corpo daquela criaturinha de dois anos de idade. A mãe não entendia o motivo do breve voo. E, no entanto, culpava-se. Mas culpava ainda mais o desejo dos homens, a mania da carne e o fulgor do desejo. Estava ali, agora, com a cabeça do seu menino a rolar pelas mãos, e talvez tivesse mesmo de sepultá-lo sem o corpo, vendo apenas os seus olhos fechados pela janelinha do caixão.

A única a se aproximar da miserável mulher, após algum tempo, foi Eneida, mulata que há pouco havia chegado na vizinhança, e por isso mesmo não conseguiu entender a motivação daquela dupla crueldade. A multidão tomava a rua, e as pessoas acotovelavam-se para prestigiar o triste espetáculo. Jacira começara a uivar como a loba que perdesse seu filhote para a boca carnívora do mundo. Gritava, esperneava sobre o calçamento ardil do fim da tarde, e ardia-lhe, no entanto, apenas o seu coração mole. Eneida abraçou-lhe com uma ternura inédita, e começou, também, a chorar a perda de Jacira. Esta, por sua vez, acalentou-se nos ombros da negra, de modo que se avistasse esta cena um Caravaggio ou um Rafael, boa obra teríamos para o fim dos nossos tempos.

Chamou-se, então, os policiais, as ambulâncias, o jornalismo e tudo o mais. Logo a Aluísio Azevedo estava na televisão, e Jacira virava mártir deste mundo violento e cascavel que se apresentava. O governador em pessoa, após tomar conhecimento do caso, decidiu arcar com as despesas do sepultamento, ao que Jacira respondera que não. Porque a morena queria enterrar seu filho, a cabeça do seu filho, sozinha, na solidão em que sempre esteve. E assim aconteceu.

Auxiliou-a apenas a pobre Eneida. Como o corpo não se pode encontrar, mesmo depois de buscas e muito alarde a nível nacional, Jacira resolveu, às escondidas, enterrar a cabeça do filho. Rompendo com todas as determinações do Estado, da Justiça e da própria população, abriu um buraco no jardim da própria casa, ajudada pela mulata que agora se tornara sua amiga, e enfiou, não sem chorar, a cabeça do filho na areia úmida. A todos que lhe perguntavam, posteriormente, sobre o assunto, Jacira fazia-se de surda, e apenas o silêncio respondia.

Eneida pouco falava com a amiga, mas tinha muita curiosidade em saber da morena sobre tudo o que se passara. E como a curiosidade é, enfim, a mãe de todos os males, quanto mais Eneida se mostrava interessada, mais Jacira afastava-se da mulata. A morena era forte. Era mulher aparentada à rocha.


*


Eneida viera de Pernambuco. Vinha fugida de Garanhuns por não terem os ossos aguentado o tímido frio daquela cidade. E também porque seu marido, mais bêbado que homem, ameaçava-lhe todos os dias com um trêmulo facão. Eneida era metida em igrejas e muito amiga do Padre Fernando. Tão amiga que a este dava alguns privilégios, afinal não apenas de preces vive um homem.

O bêbado, em um dos raros momentos de sua lucidez, entreouviu conversas pelas ruas, onde o já estavam chamando de corno. Quis matar Eneida, mas a mulata tinha corpo resistente, e escapou corpo-inteiro das meias palmadas que despendia-lhe o marido. Como o padre houvesse gostado de sua hóstia, Eneida quis livrar-se do bêbado. Fernando a aconselhou que não, que isso já estava no terreno do Diabo, e que sua alma pagaria por estes pensamentos. A mulata disse-lhe que não pagaria coisa nenhuma, porque não iria fazer nada e, de súbito, entregou ao padre a difícil tarefa, sob pena de perder o acesso ao corpo roliço da mulher e, mais que isso, da revelação, para toda cidade, daquele caso proibido. O padre estava entre a cruz e a carne.

Mas como o espírito pouco sente de orgasmos, escolheu o padre o amor pela carne, e chamou o marido de Eneida ao confessionário, para conversar, de homem para homem, e resolver aquele mal entendido de uma vez. Fernando, que mais inteligência tinha do que os dois outros envolvidos, arquitetou o plano de modo que ninguém suspeitasse de nada. Preparou tudo para o evento tão planejado e sentou-se à espera do bêbado.

Já os dois no confessionário, Fernando explicou que tudo não passava de boatos, de invenções maldosas do povo, e que já estava até pensando em mudar de paróquia, porque aquelas pessoas não mereciam a sabedoria divina que ele estava a compartilhar. As palavras muito agradaram o marido de Eneida, que sempre tivera o padre em muito alta estima e consideração. Disse, então, o bêbado, que tudo estava resolvido, mas que proibiria a ida de Eneida à igreja somente para as pessoas não maldarem o "nosso bondoso padre", como insistiu em dizer. Terminadas as palavras, o bêbado calou-se. Fernando disse que compreendia e que tinha certeza do perdão do homem, mas que para ele tornar-se de novo puro, livre de qualquer rancor ou pensamento mal, tomassem ali, os dois, o sangue puro do Senhor, aquele que lavou todos os nossos pecados nesta terra. Assim foi que o padre abriu a janelinha do confessionário e passou um pequeno cálice de vinho às mãos do marido de Eneida.

Quando a mulata viu o homem chegar em casa, mal pode esconder o espanto. Pensara logo que o padre havia declinado do intento e já ia colocar a boca no mundo. Mas o bêbado vinha sonolento, como em outra dimensão. Disse que lhe havia perdoado, mas que não estava se sentindo tão bem, quando subitamente tombou para frente, ainda de olhos abertos. Fernando aparecia à porta, atrás do marido. Eneida era inteira confusão. Mas tudo clareou quando o padre pediu à mulata para que colocasse o marido na cama. Este ainda balbuciava sonolentas palavras, e podia-se mesmo distinguir insultos dos mais variados, enquanto os olhos agigantavam-se na direção do padre.

Fernando, então, vendo que seu plano estava ocorrendo dentro do esperado, tomou a mulher para si, beijando-lhe tão virilmente que a mulher espantou-se. Descoladas as bocas, o bêbado tentava reagir de cima da cama, mas como seus sentidos estivessem a léguas, grunhia apenas alguns poucos xingamentos. Foi impulsionado por esta fraqueza do bêbado que o padre pôs a mão sobre a cabeça da mulata, fê-la ajoelhar-se e cumprir todo o ritual que por semanas havia se repetido na capela. Ao final de todo o espetáculo, como cortinas que se fechassem, Fernando pousou o travesseiro sobre o rosto do corno, que morreu mansamente.

Mas fiquemos, por enquanto, apenas com a desculpa de que doíam-lhes os ossos no terrível frio de Garanhuns.


*


Uma semana depois de ter enterrado a cabeça do filho no quintal de casa, Jacira tentava voltar a viver. Os homens, seus vizinhos, já haviam retomado o velho hábito do gracejo, e a desejada das gente, mesmo cabisbaixa e soturna, despertava nos maridos uma profunda excitação, porque seu corpo parecia mesmo moldado para tudo quanto fosse desejo. E qual não foi o espanto de Jacira ao entrar em casa naquela tarde de maio de 2003? Afinal, como viver quando se encontra, não sem susto, o resto do corpo do filho apodrecendo sobre a própria cama?

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⏰ Última atualização: May 30, 2015 ⏰

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