De Volta Para Onde?

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 -É, Fuligem, isso é um adeus. Provavelmente.

Olhando diretamente para os olhos amarelo-esverdeados do seu colega de trabalho, Tomas se prepara para mudar completamente o mundo.

- Se eu tiver sucesso, talvez eu volte a tempo de dar tua janta. Caso contrário, a titia Laís vai cuidar de ti. 

- Miau.

- É, eu sei, pode ser que eu vire pó se esse pseudoburaco de minhoca for instável, mas acredito na equação, ele está no ponto perfeito.

O bichano, como se entendesse a gravidade daquilo, acaricia as pernas do jovem físico, dando o consentimento para prosseguir.

Tomas aperta firme sua roupa de matéria E, feita do mesmo material que sua maior criação: o primeiro buraco de minhoca, disponível na versão pocket. Com esse traje, sobreviveria aos mais diversos cenários destrutivos, fosse radiação, espaguetificação ou qualquer outro, e suas moléculas aguentariam o tranco da velocidade sub-luz do vórtice espaço-temporal, vet para os íntimos.

Respirando fundo, inicia o cronômetro e dá um pequeno passo.

A sensação de formigamento para e Tomas sente o princípio da inércia ser aplicada nele por um corpo invisível. Todas as partes do próprio corpo ainda estão presentes, o macacão, levemente chamuscado, cumpriu o dever.

Checa os arredores e percebe que há apenas grama e vegetação alta à volta. Ao conferir o relógio percebe que 42 segundos se passaram desde que entrou na máquina. "Meu Deus, será possível?"

Sai correndo em busca de um calendário. Se sua criação foi um sucesso, precisa percorrer apenas 2km para o sul para encontrar o antigo/atual estádio do Grêmio.

E lá está ele, imponente na sua forma de tupperware.

Vai até um terminal de autoatendimento. "Credo, que coisa mais jurássica.". Seleciona, trêmulo, o próximo jogo do tricolor e confere a data: 23/04/2023, domingo. Um ícone vermelho no canto inferior direito da tela indica que o jogo acontecerá em algumas horas.

- Deu certo. Não acredito, funcionou mesmo! – Os gritos de felicidade atraem o olhar despreocupado de alguns vendedores ambulantes que estão no entorno.

Tomas pouco liga, tinha uma missão: matar o avô.


Ele sabia que o pai do pai completa 12 anos hoje e, sendo um gremista fanático, seu aniversário seria comemorado ali mesmo, no estádio do "maioral". Tomas orquestrou seu plano com maestria. Era a final de um importante campeonato, o Grêmio perderia, ocasionando uma das maiores revoltas da história do futebol. A Arena foi destruída por completo nesse mesmo dia e, como repreensão, o time foi desfeito, transformando Porto Alegre numa cidade inteiramente colorada.

Essa era sua chance. Só precisava esperar o tumulto acontecer. Quando criança, ouvira o avô contando milhares de vezes sobre esse dia, como ele participou da destruição do estádio e presenciou uma briga horrenda entre duas gremistas, uma delas, inclusive, foi morta. Tomas vai fazer apenas uma mudança: cortar a garganta do avô enquanto seu bisavô incita a briga das duas mulheres à frente.

Tudo ocorre como planejado. Ao final do dia, Enzo Rodrigues é um dos nomes que compõe a breve lista de óbito do incidente.

Tomas volta, triunfante, ao local de onde veio, o coração dançando uma frenética melodia. O relógio smart pisca uma luz azul, indicando que o pseudoburaco está operante. Clica três vezes com três dedos na tela, sente o corpo sendo puxado e o formigamento recomeça. Apenas um pensamento preenche sua mente:

"será que vou rever meu gato?"

O formigamento cessa, dessa vez se mantem firme. Uma felicidade inédita chega em rompante ao olhar para a estante e ver o rabo cinzento de Fuligem, indicando que o felino se encontra ali. Alguns "pspspspsp" e o segura no colo, a mesma personalidade dengosa de sempre.

- Eu voltei, ainda tô aqui! Tu ainda tá aqui, Fuli! – Checa as notícias e compara com os prints tirados antes da viagem, armazenados cuidadosamente no relógio, são idênticas. O mundo não votou para um estado primitivo e nem sofreu nenhuma alteração.

- Alô, mãe? É eu sei, desculpa tá ligando assim no meio da noite. Tá tudo bem sim, mãe. Me escuta. Qual o nome do papai? Só me responde, tu já vai entender. Enzo Filho, né? Okay, que tal uma janta aí, hoje à noite? Tenho algo incrível pra contar.

Desliga o telefone e faz uma tentativa, inútil, de dormir. A agitação é demais para ficar parado, então mata tempo conferindo os dados da pesquisa e preparando os arranjos finais.

Chegando a hora do jantar, Tomas vibra de excitação. Seu pai ainda é o mesmo, mas o pai dele deveria ter morrido anos antes de conhecer a mulher com quem teria o filho. Em breve, descobrirá qual solução hipotética do Paradoxo do Avô é a correta.

Ao abrir a porta, a mãe é recebida de maneira inédita: um forte abraço e um sonoro beijo.

- Uau, mas que animação toda é essa?

- Já te conto, vamo ali na sala de estar, o papai tá vendo TV eu imagino, quero contar isso pros dois.

Antes de chegar à sala, se depara com algo inquietante. As fotos nos porta-retratos, aquelas onde ele, a mãe e o pai deveriam aparecer, não são como Tomas lembra. Um homemdiferente, mais alto e loiro, sorri para ele, o queixo antes esburacado agora liso.

Há outro homem, numa foto claramente mais antiga, seu holograma uma representação de uma fotografia digital.

- Mãe, quem é esse? – pergunta apontando para a foto de um tempo passado.

- Filho, tu não tem dormido? Esse aí é teu avô, pai do teu pai.

- Tá falando desse loiro aqui?

- Sim.

Não pode ser, ele continua sendo o Tomas de sempre, sua mãe também é a mesma, o Fuligem é o Fuligem, o mundo é o mesmo, como pode que só seu avô e seu pai são pessoas diferentes? Se seu pai não fosse a mesma pessoa de antes, seu DNA também seria diferente, tornando o Tomas um Tomas diferente, e não esse Tomas que existe aqui e agora.

O cérebro parece sorvete num dia quente. Isso não faz sentido algum. Não se encaixa em nenhuma das alternativas possíveis já pensadas ou cabíveis.

Saca o celular e procura a lista de óbito daquele jogo. "Enzo Rodrigues, 12 anos. Morto por um desconhecido que cortou sua garganta" uma imagem mostra Tomas de costas, se reconhece pelo macacão especial.

Não. Não pode ser. "Se ele morreu mesmo, e quem o matou foi eu, como que eu tô vivo? Como que isso aconteceu nessa realidade e não em outro multiverso?".

O mundo acelera e Tomas não acompanha.

A mãe corre em sua direção, uma expressão preocupada toma conta do rosto. O pai/não-pai vêm do cômodo onde assistia TV ao ouvir o grito da esposa. Ajuda o filho a se sentar na confortável poltrona do papai, os dois o olham preocupados.

- Filho, o que houve? Tu tá usando de novo?

Tomas explica aos pais a situação, que ouvem de forma atenta, interrompendo apenas para perguntar o significado de alguns termos ainda desconhecidos.

- Não é nem mesmo um Paradoxo de Bootstrap, sabe? A 2ª lei da termodinâmica tá intacta, tudo bate, menos esse cara aí e aquele avô.

Tomas observa os pais se comunicarem com a famosa telepatia parental.

- Filho, foi só um baita azar. Eu te imploro, depois de ouvir o que eu vou te contar, me promete que tu não vai assassinar mais ninguém. Promete isso, olhando aqui pro meu celular, que eu te conto o que deu errado.

Sem pensar duas vezes, Tomas faz o que a mãe pediu, o motivo não é claro, mas o que importa é entender o que havia acontecido e ela soava como alguém que sabia.

- Tu escolheu o avô errado.

De Volta Para Onde?Onde histórias criam vida. Descubra agora