Capítulo Único

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(Número de Palavras: 2.040)


"Enquanto eu puder cantar, alguém vai ter que me ouvir"

Trecho da música 'Cordão', de Chico Buarque

Um dois, um dois. Para. Um dois, um dois. Respira. Calma, Maria, calma. Você vai chegar lá. É só ir devagar. Um pé de cada vez. Um dois, um dois.

Não chega. Maria tomba no meio-fio, já zonza e ofegante, o peso nas costas metade cansaço metade vergonha por ter desistido logo nos primeiros minutos.

Tem sido assim nos últimos dias: logo após dobrar à esquina da rua do condomínio onde mora, passar pela rua da academia cuja mensalidade custa quase a prestação de um carro zero e depois percorrer a rua da padaria que troca de dono como uma adolescente entediada troca de namorado, a falta de ar atinge Maria. Os olhos, mesmo já tendo visto de tudo um pouco nos anos em que cuidou de desconhecidos com mais afinco do que cuidou dos próprios dentes, turvam. Os joelhos, ah, os malditos joelhos, em frangalhos depois que passou dos sessenta, decidem pifar de vez.

Ela abraça as pernas, o peito subindo e descendo, subindo e descendo. Dois moleques nos seus quinze anos, com uniforme de colégio e cara de quem vai matar aula para beber com os amigos a encaram de esguelha, por um segundo preocupados de que a idosa tenha um treco bem ali, sozinha, acuada na beirada da rua pela qual o formigueiro de gente zanza sem enxergar a outra. Talvez vejam nos fios brancos dela os mesmos fios brancos da avó.

Um cutuca o outro, como quem manda o próximo tomar uma atitude. A batalha de olhares dura poucos instantes. Logo, mochila nas costas e entre risadas de um carro que passa com uma música obscena estourando nos alto-falantes, eles se dispersam na multidão.

Engolida pela metrópole batizada de Sanatório Geral, capital de Alma Vermelha, país nanico moldado pelo contraste entre a tirania política e a sublime produção artística, Maria de Nazaré usa toda a força que lhe resta nos braços para se erguer e continuar caminhando. É a única saída.

Diagnosticada com fibromialgia, doença que causa dores pungentes e alterações de humor, já tentou de tudo: academia, meditação, hidroginástica... Torrou boa parte da pensão que seu amado Nelson deixou para trás quando foi encontrar nosso Senhor Jesus Cristo. Os músculos continuaram latejando. Os pés, frágeis, não aguentavam mais guiá-la até a creche onde o netinho estudava. Precisava pausar no meio do caminho, ainda que o percurso da casa até o local não levasse mais que cinco minutos.

Um dia, uma das poucas amigas que ainda a visita ao invés de mandar uma foto de "bom dia" via mensagem de celular comentou que a prima também sofria de fibromialgia. A tal da prima era uma quarentona com tudo em cima: cabelos longos, cílios longos, tudo longo, a proporção perfeita para esfregar na cara de Maria que a natureza tinha seus favoritos.

Belezas à parte, a bonitona revelou: o segredo de aturar uma doença tão cruel, que mexe com o corpo e com os brios - e que vem tirando o sono de Maria tanto quanto a falta do corpo robusto de Nelson para abraçá-la de madrugada - é a caminhada. Coisa simples.

A aposentada duvidou. Em risinhos desajeitados, sugeriu que a amiga e a prima dela parassem de brincar com a sua cara. Caminhar, Deus do Céu! Botar um pezinho na frente do outro. Quando é que alguma coisa tão banal pode ser importante assim?

Entretanto, sem opções, ela pagou para ver.

- Vamos lá, meu povo! Vamos ajudar uma artista a continuar a encantar o mundo com a sua arte! - em tons teatrais, uma voz esganiçada clama perto de Maria, acompanhada do tilintar de madeira se chocando contra uma caneca de alumínio.

Enquanto Eu Puder CantarOnde histórias criam vida. Descubra agora