Ruidos do passado

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Acordei com o som do alarme, tateei no escuro para achar o celular e desligar antes que minha filha acordasse. Levantei tentando fazer o minimo de barulho possivel. Eliza, minha mulher passou a noite balançando nossa filha. Sol esta com três meses, e é o amor da nossa vida, mas a fase das cólicas, que segundo os médicos passaria nos dois primeiros meses, ainda esta nos enlouquecendo.Liguei a cafeteira e fui tomar um banho, pra despertar. Hoje é o meu primeiro dia no emprego novo e estou muito ansioso, foram dois meses procurando trabalho, eu estava sobrevivendo com bicos aqui e ali, e só não havia faltado nada para Sol porque tivemos apoio dos pais de Eliza, e até Jheny, que também levava uma vida bem modesta, me ajudou na última semana.Conseguir trabalho na maior empresa de Londrim, me deu esperança de dias melhores, depois de uma entrevista longa e um teste exaustivo, fui escolhido para a vaga de técnico de manutenção, e precisava dar o meu melhor nos primeiros meses de experiência, tinha que controlar minha ansiedade, e não permitir que fosse maior que a minha capacidade profissional.

Beijei minha mulher e passei a mão de leve sobre a minha filha que dormia pesado, fiz minha oração e sai para encarar o dia.Meu celular vibrou no bolso, e antes de pegar já imaginei que seria minha irmã querendo saber como eu estava

-JHEY: "Maninho Bom dia, espero que você esteja bem, e que seu dia seja especial, estou torcendo por você...Ah! não esqueça de contar Jhojho sobre o novo trabalho, sei que ele vai ficar feliz por você"

-EU: "tabom mamãe. Bjs e bom dia" Sempre que minha irmã fazia um pedido em tom de ordem, eu chamava ela de mamãe, só para irritar ela um pouquinho. Embora Jheny seja minha irmã mais nova, ela tinha essa mania de cuidar de mim e do meu irmão como se fosse a nossa mãe. Não me importo, na verdade, mas sinto que minha irmã abriu mão de muitas coisas, por ser a única mulher da casa e se sentir responsável por todos, inclusive meu pai.Papai, fez o possivel para se manter em pé depois que minha mãe sumiu no mapa, mas não aguentou por muito tempo, a decepção e a dor que sentiu ao ser abandonado pela mãe dos seus filhos o levara a um caminho de bebedeiras e ruínas. Lembro do meu pai chorando nas madrugadas, muito tempo após sermos abandonados, lembro do dia que nos abraçou muito forte e disse que nos amava, fechou a porta do quarto e nunca mais o vimos com vida, não percebemos quando ele tomou diversos medicamentos antes de se deitar, não conseguimos salva-lo. A mulher que nos colocou no mundo matou meu pai de desgosto.Com apenas dezesseis anos assumi a responsabilidade da criação dos meus irmãos gêmeos, que estavam com onze anos, consegui emprego no restaurante Golden Fork, que ficava na Maple Street, lavava os pratos, tirava o lixo e limpava os banheiros, ganhava muito pouco, mas foi o único trabalho que consegui, e que me permitia continuar na escola, para terminar o ensino secundário. Quando terminei o ensino secundário, ao invés de cursar a universidade, eu arranjei dois empregos para conseguir continuar dando de comer aos meus irmãos, e tentar dar a eles uma vida mais digna possivel.

Jheny logo estava responsável por todo o cuidado da casa, aos catorze anos ela já agia como uma mãe e dona de casa, aprendeu a cozinhar em videos no youtube, então estávamos sempre sendo cobaias em novas receitas. Jhonas era o mais inconformado com nossa situação familiar, enquanto eu e Jheny evitávamo falar da mulher que nos deixou para trás, Jhonas estava sempre questionando o porque dela nunca mais voltar para nós.

"Aposto que a Jheny era chorona,e por isso ela foi embora"

"vai saber se o papai não batia nela, e ela teve que fugir"

"e se ela foi sequestrada e nunca mais conseguiu sair do cativeiro"

"Como é que você tinha 7 anos e não se lembra porque ela foi embora"

Com o tempo, os questionamentos do meu irmão em relação a nossa mãe foi desaparecendo, e ele foi se tornando mais e mais independente.Jheny nunca falava da nossa mãe, e quando era questionada, sempre respondia "Não conheci, ela se foi eu ainda era muito pequena"

Quando Eliza engravidou e veio morar comigo, os gêmeos decidiram nos deixar na casa que meu pai  havia nos deixado,para mim e minha pequena familia. Jheny abriu uma pequena confeitaria, e morava no quartinho no fundo, Jhonas trabalhava em um café do melhor amigo, e nas folgas fazia pequenos trabalhos como técnico de informática. Hoje eu com 25 anos e os gemêos com 20 anos, sinto que nossa vida esta começando a andar nos trilhos. Procuro não pensar na mulher que foi a minha mãe, até porque cada vez que penso nela, me vem um gosto amargo na boca, prefiro fingir que ela morreu.                                                                                                                                   ---------------------------------------------------------------------------------------------------

Já eram quase 18:15, minha cabeça doía um pouco, a integração de um dia, foi cheia de informações e dados que eu tinha que guardar para não esquecer, andamos por todo o edifício, e visitei cada caixa de luz do prédio, e no final o chefe pediu para colocar a placa de manutenção no elevador da chefia

— coloque a placa antes que a dona encrenca descubra que o elevador dela esta com barulho irregular!

— Quem é a dona encrenca? Perguntei rindo. Após passar o dia com o Sr. Juarez, já estava difícil saber quando ele estava brincando ou não.

— A chefona rapaz, e como conselho, mantenha longe dela, porque aquela é mais azeda do que limão novo!-Após colocar a placa, pode bater o seu ponto e ir para casa rapaz, amanhã começa a brincadeira de verdade. 

Já no corredor no andar da presidência as luzes tremulavam de forma estranha. Cheguei ao local, e já posicionei a placa de aviso que indicava que o elevador estava fora de serviço, virei-me para retornar pelas escadas, escutei vozes, virei e vi uma mulher pressionar o botão do elevador com força, claramente ansiosa para ir para casa. Antes que eu pudesse alertá-la, as portas se abriram e, em um piscar de olhos, ela deu um passo à frente, direto para o vazio. Meu coração disparou, e em um impulso, corri e agarrei seu braço com força, puxando-a para trás. Ela caiu de joelhos no chão do corredor, respirando com dificuldade. Eu estava tão abalado quanto ela, tentando recuperar o fôlego.

— Vo-você me salvou -disse ela entre suspiros. Eu apenas assenti, ainda sem fôlego.

— Sim. Meu Deus! A senhora não viu a placa de aviso de manutenção do elevador?Ela me olhou mais atentamente, claramente tentando entender quem eu era. Seu olhar me desconcertou de um modo estranho.

— Qual é o seu nome? — perguntou, tentando se recompor. — E qual o seu setor?

— Sou novo aqui, comecei hoje, na verdade -respondi com um leve aceno de cabeça. — Sou o novo técnico de manutenção. Meu nome é Ben.

Ela parecia tentar absorver meu nome, mas logo ouvimos passos se aproximando. Uma jovem apareceu, franzindo o cenho ao nos ver.

- Não desceu ainda, mamys? Perguntou, olhando de mim para a mulher no chão.

- Quem é você?

- Ele é o Ben, filha. E acabou de salvar a minha vida. Se não fosse ele, eu estaria no fundo do fosso desse elevador. Ele é o nosso novo técnico de manutenção. A jovem manteve os olhos fixos em mim, com uma carinha de azeda.

- Obrigada por salvar minha mãe — disse ela. 

— Mas espero que tenha mais cuidado da próxima vez. Não queremos que acidentes aconteçam com a presidente da Sheine. Engoli em seco, sentindo um misto de vergonha e nervosismo.

— Meu Deus! me desculpe, eu não sabia que a senhora é... — pigarreei, tentando me recompor. Olhei para jovem e disse 

— Farei o meu melhor, senhorita. Não se preocupe. Ela não respondeu, apenas deu um breve aceno de cabeça antes de se virar para a mulher, que agora eu sabia ser a "Dona encrenca" que eu havia salvado.

— Vamos, mamys. Acho que já tivemos emoção suficiente por hoje. A mulher assentiu, ainda tremendo um pouco, e deixou que a jovem a guiasse para o próximo elevador. Quando passaram por mim, vi que ela ainda tremia um pouco.Desci pela escada de serviço, até minha salinha que ficava no subsolo,21 andares de escada, tomei um copo de água, respirei fundo, aquela mulher tem uma energia estranha, melhor ficar longe mesmo. Troquei de roupa e me preparei para voltar para casa, meu primeiro dia com certeza rendeu mais do que imaginava.

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