Devaneios de Lenita e sua infância

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Lenita ajudava sua mãe religiosamente em casa. A casa, sempre muito movimentada e cheia de gente, não era grande, mas não faltavam tarefas a fazer. Com a ausência de seu pai, que tralhava demais, Lenita e seus irmãos ficavam encarregados de tudo, inclusive assegurar sua mãe, que vivia com medo na comunidade em que moravam.

Em casa, a brincadeira era sempre de interpretar personagens, nas quais Lenita estrategicamente escolhia as femininas. Isso gerava olhares desconfiados entre seus irmãos, mas seguiam o brincar.

Um novo dia e Lenita iniciaria em uma nova escola. Suspirou profundamente, pois nada seria diferente e esperava apenas mais um lugar cheio de preconceito.
Ao sair de casa, logo ouviu o comentário raivoso de uma criança de sua idade que morava na comunidade:

- Viadinho. - a criança disse com um sorrisinho.

Para Lenita, isso não era novidade, o tratamento, mas tinha pavor que seus pais vissem ou percebessem o que acontecia.

O caminho até a escola foi curto e logo chegou. Sentou-se atrás de uma menina com os cabelos trançados e parda como Lenita. 

- Bom dia, turma. Meu nome é Verônica e sou a professora de vocês. - apresentou-se uma mulher negra e jovem. 

A aula correu de maneira tranquila e muitos gostaram da professora.  Lenita a adorou, pois a professora contou com sua ajuda para distribuir as atividades. Viu na figura alguém a se inspirar.

No intervalo, as brinquedotecas eram espaço disputado entre os alunos. Para Lenita, eram um espaço de opressão: dois espaços destinados a gêneros e isso era algo que paralisava Lenita, que não sabia para aonde deveria ir. O local de meninos, destinado a crianças lidas desta forma, como Lenita, não a apetecia. Enquanto o espaço de meninas não era acolhedor, pois consideravam Lenita um menino.

A solução, nestes momentos, era ir para o espaço dos livros, único lugar neutro e de algum acolhimento. Os livros eram seus verdadeiros amigos.

...

- Lenita, vamos começar a reunião. - uma voz a despertou de seu devaneio. 

- Desculpe, já estou indo. - comentou Lenita em resposta.

As memórias tinham-na levado para um local de sua infância de nostalgia, mas também de dor. As brincadeiras sempre foram tópico feliz para muitas crianças, mas para Lenita foram imposições dolorosas em muitos momentos.

Hoje, como mulher trans, Lenita coordena parte das reuniões de um grupo feminista, do qual passou a fazer parte e fora muito bem acolhida.

A lembrança da professora que transformara sua vivência em um período escolar confuso ainda presente em seu campo de visão, Lenita dirigiu-se para o palanque da reunião que convocara hoje.

Devaneios de Lenita e sua infânciaWhere stories live. Discover now