Capítulo II

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Com os tênis nas mãos e suada da corrida, Letícia caminhava na areia deixando que o refluxo das ondas lavasse seus pés. Havia soltado os longos cabelos negros e o vento os jogava por cima de seu ombro, enquanto ela observava as marcas que ia deixando na areia. O pensamento voando solto junto com seus cabelos. Lembrava-se da cidadezinha que há dois dias tinha visto através do retrovisor pela última vez, da vida contida que teve lá, da solidão dos dias passados na cozinha da madrinha lavando a louça do buteco, sendo assediada por bêbados que fediam a peixe e, das horas passadas estudando ou conversando na companhia da professora Glória, a quem devia a dádiva de poder sonhar e as aulas de francês. 


Foi a professora quem conseguiu a entrevista na escola de idiomas onde começaria a lecionar no dia seguinte. Cedeu-a, juntamente com seu único amigo, Carlos, que já fazia faculdade de medicina, ajudou-a a deixar em ordem o seu novo lar. Devia tudo que sabia da vida a esses dois amigos. A saudade apertou seu coração.


Agora estava tudo perfeito, desde os onze anos juntava cada centavo e comia cada livro. Dispensou viver a adolescência, festas, namorados, não tinha tempo para isso, nem para amigos. Fechou-se em seu mundo. Desde que seus pais morreram e foi adotada por sua madrinha, focou-se em um único objetivo e só conversava com sua velha professora Glória e com Carlos. Mas tinha chegado lá. Sentia correr em suas veias a liberdade de ser alguém. Iria começar a dar aulas de francês e a frequentar o curso de história no dia seguinte.


Estava muito feliz, queria muito compartilhar com alguém aquele seu momento. Mas não conhecia ninguém na cidade. Olhou para o mar, as ondas douradas por um cobre de sol do fim da tarde. Sentiu uma imensa vontade de mergulhar. Lembrou-se que ao sair de casa para a corrida, havia posto um biquine por baixo da malha. Não teve dúvidas, tirou a roupa, olhou para areia, havia dois rapazes, um tocava violão, o outro vestia roupa de surf e tinha os cabelos molhados, não sentiu aquela sensação estranha de desconfiança que a abatia sempre que atendia a um cliente novo no bar de sua madrinha. Agora ela era livre.


- Olá rapazes, posso deixar minhas coisas um pouco aqui com vocês enquanto dou um mergulho?


- Claro que sim! Respondeu com um sorriso o surfista enquanto o outro continuou a se ocupar das notas, parecendo nem perceber sua presença.


Correu para o mar e se jogou. Furou algumas ondas. Mergulhou. Sentiu até que podia respirar debaixo d'água. Mergulhou fundo e entrou em uma apneia, deixando a maré levá-la. Sentiu como se fosse parte do mar, como se aquele lugar fosse seu habitat natural. Esqueceu seus pensamentos, esvaziou sua mente e voltou sua visão para a imensidão azul. Verde. De todas as cores. Cheia de vida, de seres que não conhecia. A brancura de sua pele contrastando com o negro de seus cabelos naquele cenário fluido. Estonteantemente lindo. Tranquilizador. Que tinha sua própria melodia, uma melodia desconhecida e tão fluida envolvendo seu corpo e tornando-o parte daquele balé complexo e perfeitamente ensaiado. Adorou por um tempo tudo aquilo e adormeceu no mais tranquilo sono.


Inesperadamente algo a acordou, uma pressão muito forte no peito. Sua garganta ardia e ela ouvia vozes distantes que gritavam em desespero. Tentou abrir os olhos e só enxergou borrões, tudo estava molhado, o lugar em que se encontrava era cinza, duro, tinha a sensação de ter despencado de um penhasco. Seu corpo todo doía. Sua cabeça girava e tudo a sua volta rodopiava. Sentia-se inerte, não conseguia mover um só dedo. O pavor apoderou-se dela e se viu dentro de um carro que capotava em uma noite chuvosa. O desespero a impeliu. Sentou-se em um impulso e gritou entre soluços com todas as forças  que conseguiu encontrar em seus pulmões: "socorro!".


Ficou por alguns minutos chorando desesperada até perceber que estava sentada na areia, envolta em uma toalha e abraçada a um cara que logo reconheceu, o surfista.


- Você está bem? - perguntou ele - puxa, você nos deu o maior susto!


Meio desconsertada, tentando recompor-se e organizar as imagens em sua cabeça, separando-as em sonhos, pesadelos e realidade, ela balançou a cabeça afirmativamente.


- O que aconteceu? - perguntou confusa.


- Você quase morreu, foi isso que aconteceu! Por acaso você queria atravessar o oceano ou só é doida mesmo? - disse o outro rapaz que a olhava.


- Calma Pedro! - disse o surfista - A garota ainda está se recuperando, pega leve com esse seu mau humor. O meu nome é Rodrigo, - ele falou voltando-se para ela - o do meu amigo aqui é Pedro.


- O meu é Letícia.


- Bom, Letícia, você só precisa conversar um pouco com o mar da próxima vez garota, ele faz o tipo difícil, sabe? Não costuma ir direto ao ponto, falou com intimidade dando um pequeno soco em seu ombro. Agora precisa descansar. Onde você mora? Podemos deixá-la em casa.


Desleixada, com a xícara de sopa de pacotinho quente na mão, sentada na varanda ela refletia sobre como em dois dias tinha vivido mais emoções do que em dezoito anos de vida. Lembrava-se pouco da sua infância, de seus pais. Eles estavam sepultados em um passado muito distante em sua mente. Enterrados entre a culpa que carregava por ter sido a causa do acidente e os longos anos em que a realidade era apagada todas as noites antes de abrir os livros e sonhar com aquele momento. Agora a vida lhe pertencia, deixaria de ser um espectro de alguém que não conhecia, com quem tinha sido obrigada a conviver e via diante do espelho todos os dias. Iria tornar-se uma pessoa. Sentir-se sólida.


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