Quebra

34 5 0
                                    

Dizer que a situação saiu do controle era pouco para descrever o extremo na qual foram levados.

Era uma armadilha, toda aquela estúpida ilusão de que conseguiriam fugir.

Foi tolice acreditar que aqueles que deveriam ser chamados de sua família não seriam capazes de tomarem atitudes drásticas. Ou talvez tenha apenas subestimado o que significava para eles que escolhesse priorizar a ômega no lugar de todos os valores que suspostamente deveria sustentar com orgulho.

Havia um motivo para os primários serem tão raros e havia aprendido isso agora, por experiencia própria: não havia nada que pudesse aterrorizar mais o mundo do que a união de um poder tão descomunal.

Manter a ilusão de que ainda eram humanos fazia parte de um pilar fundamental demais para ser quebrado tão facilmente. Quando as mutações começaram, o mundo jurou que estava tudo sobre controle e que voltariam a se estabilizar perfeitamente mesmo com os novos inconvenientes.

Destrua o planeta e se destrua para conseguir se adaptar.

Quando o surto passou, eles começaram a procurar por culpados para descontarem toda a angustia que tantas mudanças causaram. Olhavam para aquele passado odioso e o idolatravam como o auge mais incrível da espécie, então, na impossibilidade de voltar no tempo, começaram a perseguir as novidades do agora como se sua extinção fosse a resposta para a ressurreição daquele ideal.

A grande massa beta estava tão apavorada por seu status quase insignificante que não foi difícil convence-los a seguir tal discurso e assim eles o fizeram.

Elevaram os alfas ao topo como uma conquista gloriosa e os trataram como os verdadeiros merecedores da liderança porque supostamente eram o reflexo da evolução perfeita que desejavam encontrar. Da mesma forma, rebaixaram os ômegas ao lixo porque foram o símbolo mais especifico sobre toda a transformação!

Tais criaturas representavam a única possibilidade de reprodução para que surgissem ainda mais seres híbridos, já que betas ou alfas não conseguiam esse feito sozinhos. Também eram supostamente frágeis, controláveis e dóceis o suficiente para serem odiados sem conseguirem revidar.

Uma linha de raciocínio que teve muita repercussão até começar a ser superada, repensada e ultrapassada. Essa era já estava abandonado tais convicções. Até porque haviam desencadeado uma capacidade de resposta genética extraordinária e com a repressão surgiu outra ruptura.

Primários.

Até o nome mostra o qual distorcida era a compreensão sobre eles. Essa categoria em nada tinha relação com o principio, mas sim com o agora. Eram a nova transformação para se desencadear em outro tsunami de revolução.

Como uma palavra tão pequena pode gerar tanto medo, não é? Revolução...

Porque os primários iam além do imaginário da época. Caso se unissem, não haveria qualquer possibilidade de se não se tornarem uma força insuperável!

Aqueles que eram os alfas dos alfas ainda eram olhados com olhos mais apreciativos, por serem mais fáceis de manipular com o gosto do poder de se estar no topo. Logo, foram menos perseguidos e moldados em imagens extraordinárias de superioridade louvável, ou de condenável depravação corrupta. Animais domesticados leais às mãos que os alimentavam.

Os ômegas, entretanto, não eram tão facilmente controlados. Não depois de tudo. Eles estavam lá, sussurrando promessas de grandezas para seus parceiros ou parceiras quando começaram a notar que seus filhotes eram diferentes. Deixaram a mudança se espalhar por séculos como uma benção e uma coincidência, protegeram cada uma daquelas crianças com suas vidas e abriram mão das bem vistas para causarem uma boa impressão.

Eles sabiam o que aconteceria aos seus iguais mais poderosos se fossem encontrados, então os adestraram discretamente para se esconderem. Os associavam aos alfas primários porque aqueles eram incapazes de lhes causarem mal e os criavam para serem fortes o suficiente para se protegerem quando o mundo os revelassem como tal.

Crianças obviamente alfa se apresentando como ômega continuaram a ser um acontecimento raro o suficiente por muitos anos, até que começaram a ganhar destaque e a formarem um numero significativo para percebessem que havia algo errado nisso.

O genocídio veio mesmo assim. Ou pelo menos a sua idealização apareceu. Essa já não era uma guerra em que lutariam sozinhos e o mundo estava dividido demais para colocarem em pratica algo que geraria tamanha resistência. Seus novos lideres, as mesmas crianças especiais que endeusaram, não conseguiam machucar os seus pares ideais e isso os salvou tal qual seus geradores esperaram que o fizesse.

Pena que essa era uma visão geral das coisas e não acabava com a ação de poderosos grupos menores, especialmente aqueles que permaneceram presos ao passado. Presunçosos demais com sua atual honra para suportarem assumir que já não eram tão especiais assim, arrogantes demais para tolerarem desafios à aquilo que consideravam seus por direito.

Tão fodidamente assustados com o diferente.

O clã Gojo era exatamente assim.

O jovem Satoru havia sido treinado na forma humana desde cedo e era um excelente adversário. Uma arma fatal para qual muitos adultos, mesmo os fortes, mostravam o pescoço sempre que eram obrigados a compartilhar o mesmo ambiente. Entretanto, não podia dizer que dominava com tamanha maestria a besta em seu interior e toda aquela coisa de instintos sempre foi um tanto confusa na teoria.

Ainda haviam falhas mesmo nas mais perfeitas das criações.

A primeira vez em que uma troca de pele acontece normalmente está associada a fase infantil, como uma tentativa de reafirmação sobre a própria autoridade, proteção ou fuga. Para ele, porém, nunca houve uma ocasião em que se sentiu inseguro. Seu alfa sabia que era querido, respeitado e bem cuidado, nunca precisou garantir isso com as próprias garras e, por isso, a mudança nunca lhe ocorreu.

O que não mudava o fato de que sua besta estava ali a espreita, pronta para a aparecer. A questão é que talvez, se houvesse precisado dela antes, em um momento mais simples, não teria sido um completo desastre sobre quatro patas.

Prova disso foi a forma com que tudo aconteceu.

Seus bons sentidos haviam lhe avisado sobre a armadilha antes de que fossem pegos por ela.

Estavam dentro de um carro que lhe pertencia, porque não podia roubar algo que já era de sua propriedade, mas que não possuía a licença direta para usar. Não que essa fosse a primeira vez, nunca foram exatamente adolescentes reesposáveis. O incomum foi a certeza que o acometeu, metro por metro enquanto se afastavam de sua casa, de que havia algo muito errado adiante.

Uyara, que na época usava outro nome, estava no banco de passageiros ao seu lado. Seu cabelo era uma longa cascata cacheada e seu pescoço carregava uma cicatriz de acasalamento rosada, muito bem regenerada e aceita, além disso, no lado oposto do pescoço do mais alto era contemplada com uma contraparte correspondente. Desta forma, seja pelo vinculo recente ou pelas próprias percepções aguçadas, se encontrava arrepiada em alerta.

Perigo era um conceito mais familiar a ela do que a ele, mas o Gojo se viu com cada parte de seu ser se eriçando em resposta, eles eram um só e trabalhavam como tal. Juravam que isso seria o suficiente.

Uma coisa era saber que havia algo os aguardando, porém nenhum dos dois era experiente o suficiente para navegar perfeitamente pelo mar de estímulos que o mundo os proporcionava. Sempre fizeram o suficiente apenas para não se afogarem e seus inimigos sabiam exatamente disso.

O caminho que tomavam passava pela costa e subia do nível do mar na medida em que se dirigiam as estradas íngremes que adentravam o continente, uma passagem que já haviam feito diversas vezes e que conheciam bem o suficiente para ganhar certa confiança. Mas podiam admitir que havia uma inteligência subestimada e bem nítida que não anteciparam até que fosse tarde demais.

Caso o seu oponente seja mais forte que você, a melhor estratégia é usar essa força contra ele.

Mascarados pelo cheiro insuportável de peixe podre, seus carrascos apareceram subitamente no momento da ultima curva. Um outro veiculo teria denunciado a própria presença pelo barulho e cheiro de gasolina, mas aqueles homens anteciparam justamente essa constatação e se aproveitaram de seus odores convenientes para montarem o cenário perfeito.

Agua salgada, frutos do mar e maresia, características pessoais que teriam se destacado em qualquer lugar, mas não ali, não naquele cenário alterado e friamente calculado. Então quando os lobos surgiram eles causaram um susto como resposta direta da tensão que já estavam acumulando e seus posicionamentos o fizeram reagir para desviar. O que o colocou no ângulo perfeito, tal qual eles pretendiam. De forma que, quando aquelas enormes massas corporais se chocaram na lateral do veiculo, ele não conseguiu se estabilizar.

O carro derrapou e cedeu, mesmo com sua inútil tentativa de resistência. Os dois caíram desfiladeiro a baixo, capotando algumas vezes até voltarem para perto da agua e serem brutalmente freados pelo choque contra pedras. O único instinto de Satoru durante a queda foi proteger a ômega, então ele impulsionou o próprio corpo para ela e a envolveu como pode, tomando para si a maior parte do impacto.

Com certeza eram fortes o suficiente para sobreviverem, porém só se deram conta de que aquele não era uma ataque físico e sim psicológico quando já era tarde demais. Pouca coisa choca um hibrido recém acasalado com tanta força quanto danos ao seu parceiro e faz sentido que eles esperassem que o resultado tenha saído tal qual como foi, afinal, ninguém nunca havia visto o grande Gojo Satoru sangrar.

A agonia que vibrou sobre todo o corpo do alfa não era dele. Sua cabeça nem conseguia raciocinar direito o que estava acontecendo em sua posição jogada de lado e latejante pela pancada que havia levado. Tudo o que seus olhos conseguiram entender foi que sua parceira estava em baixo dele, com o rosto repleto de sangue e isso o apavorou, até ter a realização de que o sangue não era dela.

Uyara quebrou uma das pernas e teve um braço torcido para trás, porém não houve nenhum dano além desse. O que ela viu em seu companheiro, por outro lado, a desestabilizou completamente.

Usando a mão ainda funcional, a ômega os soltou do cinto de segurança e suportou o peso do alfa quando ele caiu completamente sobre ela. Satoru estava acordado, com os olhos vermelhos piscando em confusão, mas não parecia conseguir reagir, por isso ela usou da própria força para abrir a porta de seu lado e amorteceu a curta queda para fora do veiculo que aconteceu em seguida.

Aquele corpo tão menor em comparação com o do albino os arrastou para longe e ganhou alguma cooperação instintiva dele no processo. Era estranho para o alfa que ele não conseguisse pensar ou falar, mas as coisas fizeram mais sentido quando teve espaço o suficiente para prestar mais atenção em si mesmo e acompanhou a quantidade absurda de sangue que estava se acumulando ao seu redor.

Sua companheira parecia ainda mais perdida, a segundos de ceder ao desespero. Ela envolveu sua garganta com uma mão na tentativa de encontrar alguma solução para estancar o sangramento, mas não era um esforço que estava gerando resultados, especialmente não com a forma com que esse ferimento se estendia horrivelmente de seu pescoço até seu abdômen.

Se olhassem para o que restou do carro, reparariam que o vidro da frente estava completamente destruindo pelo impacto, mas o lateral estava travessado por alguma pequena arvore que teve a infelicidade de estar em seu trajeto.

O que explicava porque seu braço estava destroçado por dentro, mas essa parte jorrava pela perfuração de um desastre que teria acontecido a sua companheira sem a sua intervenção.

Uma parte de si pensou que poderia morrer satisfeito por saber disso. Mas ele lembrou em seguida que morreriam juntos pela forma com que parceiros transferiam energia um para o outro involuntariamente, então mudou de ideia e tentou se levantar, apenas para ser tomado por um estremecimento cruel que o desestabilizou de novo.

A ômega, que estava começando a se tornar ofegante com o quanto estava doando à ele, repentinamente mudou seu foco para algo mais distante e seus sentidos se esforçaram para conseguir acompanha-la. Haviam passos vindo de lá, do horizonte em que se estendia a faixa de areia. O som da corrida silenciosa de uma alcateia que sabia atacar sendo discreta o suficiente para que a presa só os percebesse quando já estivessem com os dentes do predador em seu pescoço.

Eram lobos diferentes dos que atacaram o veiculo, o que denunciava o fato de que eram um grupo grande que dominava perfeitamente a arte de caçar e todos já estavam nessa forma porque sabiam que não teriam a coragem de enfrenta-los de outro jeito.

A mulher soltou um grunhido sofrido ao olha-lo de novo, mas logo voltou a encarar seus adversários sem querer correr o risco de perde-los de vista. Eles estavam se aproximando rápido demais.

Conhece-la tão bem permitiu que reconhecesse o exato segundo em que um ideia se formou em sua mente.

- Sato-kun, você não vai gostar nada do que eu vou fazer. – Ela sussurrou, quase como um pedido de desculpas. – Mas espero que consiga me acompanhar nisso como faz em todo o resto.

E lhe deu um sorriso tão cheio de lagrimas que o fez que querer segura-la.

Ele de fato até tentou fazer isso, porém seu corpo estava ferido demais para responder.

A porra da ômega primaria que andava lado a lado com os mais fortes e tinha o seu próprio lugar entre eles, ou até como superior a todos eles se fosse completamente honesta, se afastou de seu companheiro de alma e retirou todo o apoio que estava entregando até agora. Diante daqueles olhos radioativos aterrorizados, ela se colocou entre os cinco alfas e aquele que se orgulhava em protege-la.

Seus protestos engasgados não a impediram.

- Não se preocupe, meu amor. – Ela era a imagem de uma criatura frágil lhe sorrindo grandemente e lhe dando garantias enquanto bestas assassinas se aproximavam por trás. Louca o suficiente para dar as costas a todos eles enquanto o informava um fator muito importante que havia se esquecido por um instante. – Nós somos os mais fortes aqui.

Então, para seu completo horror, a ômega correu para seus predadores, mancando e meio torta, mas com uma confiança que não sabia dizer se era completamente verdadeira. Ou pelo menos não até o momento em que os lobos estavam prestes a alcança-la e ela se lançou diretamente para eles.

Satoru teria visto as mudanças antes se ela não estivesse de costas agora, mas ele ouviu os ossos estalando e as roupas rasgando mesmo assim.

Aquele bando recuou depressa, mas apenas um pouco. Uns até ganiram vergonhosamente de medo quando a criatura se formou. A transformação para alguém que já estava acostumado era um processo rápido e fluido, os pegou completamente desprevenidos.

Ninguém além do Gojo e da família dela sabia como era aquela que se tornou Kioku Uyara nessa forma, os outros por si só haviam suposto que, se ela fosse capaz de mudar para o modo animal, seria exatamente como um ômega qualquer: pequeno e fraco. Ou, na pior das hipóteses, imaginaram que seria a luta de um grupo contra a força de um alfa comum.

O companheiro dela quis rir e quase sufocou no processo.

Porque, sendo sincero, não tinha muita noção de como sua parceira deveria se parecer diante de outros híbridos. Aquela não era uma forma que as pessoas usavam naturalmente no Japão e nunca havia visto ela com outras pessoas transformadas por perto, mas, porra, era hilário o qual pequenos os outros eram perto dela.

Sua Himawari tinha algo entorno de 1,70m de altura enquanto humana e quando lobo ela conservou esse tamanho sobre quatro patas. Seu corpo era um monstruoso animal bicolor que tinha uma predominância de castanho próximo a coluna, mas mudava para castanho avermelhado conforme se afastava disso e finalizava com preto nas extremidades.

Ela não era corpulenta como os outros, suas pernas eram mais compridas e orelhas mais arredondadas. Uma prova viva que estavam enfrentando uma ameaça desconhecida aos padrões desse país e que não deveriam se esquecer de sua surpresa diante disso.

Seus inimigos começaram a cerca-la, movendo-se avaliativamente ao seu redor, como se quisessem decifra-la para antecipar seu primeiro movimento. Entretanto, a ameaça diante de seus olhos era tamanha que não conseguiram pensar sobre o que em especifico teria levado a mulher a escolher agir de tal forma.

A loba monstruosa não lhes deu mais do que uma atenção cautelosa, ao contrario de qualquer tentativa de ataque. O que ela fez foi sentar-se e projetar seu focinho para cima, uivando como uma convocação tão urgente que tornou o pelo daqueles que os desafiavam ainda mais eriçados.

Era uma ômega chamando por seu companheiro.

Não o humano que tanto havia se acostumado, mas a fera que ele guardava sob sua pele.

Satoru já não estava em seu melhor estado de lucidez quando o som o alcançou, mas perdeu os indícios restantes de humanidade logo em seguida. Seus ossos começaram a estalar e se esticarem, seus dentes se afiaram e suas garras saíram para fora, rasgando sua própria carne no processo. Reconstruindo e modificando cada parte de si, concedendo-o uma nova estrutura e corrigindo cada falha em seu caminho ao mesmo tempo em que curava cada ferida.

Os outros lobos sentiram a presença do que estava vindo e traçaram o caminho na qual havia a maior chance de sobrevivência: escolheram incapacitar o alfa enquanto ainda podiam. Que orassem à algum deus por ajuda em todo o processo, isso era algo que não precisavam compartilhar.

Mas sua parceira estava ali e morreria antes de deixar que encostassem nele. Algo que o restante do grupo sabia que teriam que tornar literal.

Haviam vantagens de não subestimar suas presas e disso o líder do grupo sabia muito bem. Não era tolo para pensar que conseguiriam cumprir a tarefa tão facilmente e nem haviam sido contratados para matar os dois dessa vez, só queriam a fêmea e esse era um objetivo que podiam cumprir a distancia, caso necessário.

Mandar os mais orgulhosos na frente de batalha não era algo de que se arrependeria. Afinal, todo o pavor que seus contratantes sentiam dela agora estava explicitamente justificado.

Sempre havia um terrível lobo preto para mandar a luta, caso a causa parecesse perdida. Sua presença silenciosa e quase imperceptível o deixava quase tão tenso quanto contemplar as aberrações lá embaixo, porém confiava que o homem era um profissional adequado o suficiente para não ser o motivo de qualquer inconveniência.

Por enquanto, resolveriam isso da forma mais segura possível.

A mandíbula daquela que viria a ser Uyara se fechou no pescoço do macho que liderava o caminho até Satoru no momento em que ouviu o barulho amedrontador de um tiro. Assim era a humanidade e é claro que adaptariam seu melhor arsenal de caça para usar contra seus próprios semelhantes quando fosse conveniente.

As orelhas dela se ergueram em alerta e sua cabeça se moveu com uma força destruidora o suficiente para incapacitar aquele lobo por enquanto, o arremessando para longe como uma carcaça sem valor. Seu corpo foi colocado entre o companheiro e os outros, rosnando como a morte em presença física.

A dor só veio depois.

Era um habito terrível esse, o de achar que eram inatingíveis.

Ela não os dignou com qualquer reclamação quando seu pelo se tornava cada vez mais manchado. Foi um tiro em suas costelas e talvez houvesse perfurado o pulmão, mas não era como se pudesse fazer algo sobre isso agora.

A munição que usavam nessas circunstancias iria dificultar a sua regeneração e a envenenaria nessa forma, porém sabia que conseguiria suportar por tempo o suficiente para estarem bem longe dali. Não morreria mesmo no pior dos casos, só seria enfraquecida e a obrigariam a voltar a forma humana, o que definitivamente não deixaria acontecer. Era a única possibilidade em que se tornaria vulnerável.

Seus bons olhos procuraram pelas outras presenças que covardemente se escondiam no terreno alto e seus sentidos conseguiram dizer com quase precisão onde eles estavam. Precisariam chegar até lá se quisessem conquistar a chance de seguirem sem mais problemas, mas aqueles que se prestaram a enfrenta-los não deixavam de ser grandes inconvenientes.

Sua decisão foi a de elimina-los o mais rápido o possível e seguir para lá depois. Como colaboração para isso, seu coração bateu acelerado quando sentiu a temperatura abaixar.

Os lobos perderam a postura e recuaram significativamente quando a presença do grande Gojo Satoru se ergueu atrás de sua companheira. Começaram a serem tomados pelo pavor mesmo quando aquele grande animal, ainda maior que a fêmea, ficou na frente dela não com o intuito de ataca-los, mas para se pavonear para ela sobre sua forma atual.

Eles dois conseguiam ser bem ridículos as vezes.

O gigantesco lobo branco abanava seu rabo alegremente enquanto se exibia e a cheirava com o fascínio de um filhote recém transformado, tal qual um cachorrinho para a sua dona. A mulher por sua vez não o desincentivou, lhe deu uma cabeçada carinhosa enquanto começava a demonstrar sinais de felicidade também.

Aquele era um excelente momento para correr enquanto ainda podiam e por isso dois dos homens o fizeram, subitamente conscientes do nível do problema em que haviam se metido. Entretanto, aqueles que deveriam ser seus colegas de bando não eram conhecidos por serem misericordiosos. Atiraram em seguida.

Pode-se considerar que foi um golpe de sorte.

A primeira troca de pele era desorientadora, para se dizer o mínimo. Levava um tempo para se acostumar com a funcionalidade do novo corpo e com a percepção absurda que o acompanhava. Fato é que Satoru sempre teve habilidades natas para enxergar o mundo ao seu redor com uma técnica muito mais apurada do que a maioria, mas até então não estava no auge do que viria a ser a sua real capacidade.

A transformação o entregou tudo de uma forma brusca e direta, sem tempo para se adaptar. Por isso, o som que veio com o projetil foi tão incomodo que o sentiu atravessando horrivelmente por seus tímpanos e o levando a querer se proteger automaticamente. Suas orelhas se abaixaram em agonia e seu corpo estremeceu, o que o levou a buscar seu vinculo por conforto.

Tudo piorou a partir dali. Sua Himawari havia sido atingida, pela segunda vez, pelo visto, e nem tentou desviar agora, simplesmente porque sua confusão o colocaria na trajetória do dano se o fizesse.

Alerta novamente e repentinamente furioso, o lobo se voltou para a companheira, a checando ansiosamente e lhe dando lambidas de desculpas quando encontrou as feridas.

Ela parecia estar se divertindo demais com a sua cara para se importar. O que a rendeu um rosnadinho e uma mordida de brincadeira, muito dramática, quando ele percebeu.

“Consegue correr, bebezinho?” – A voz em sua cabeça o assustou de novo e o Gojo farejou em busca da presença intrusa, até perceber que a ômega o estava encarando como se ele fosse estupido.

“Isso foi você.” – Ele pensou, surpreso.

“Oh, eu sabia que você conseguiria ser um menino esperto e descobrir por si próprio.” – O rabo dele começou a se abanar de novo e ela grunhiu de uma forma que parecia uma risada. – “Isso não foi um elogio.”

As grandes orelhas brancas e felpudas voltavam a cair, ofendidíssimas.

“Himawaaaaari, você é tão cruel! Fere os meus sentimentos.” – Ele bufou, se afastando como se estivesse em sofrimento.

“Eu vou ferir mais do que isso se você conseguir me acompanhar” – Ela passou a sua frente, atenta aos arredores como ele não estava nem perto de ficar.

“Hmmm, promessa?” – A grande bola de neve se ergueu toda, interessada.

“Promessa.”

Sua companheira não lhe deu tempo para raciocinar, se projetou para frente e iniciou uma corrida puramente mortal e calculada para alcançar os inconvenientes terrestres. Estando atenta ao perigo daqueles que estavam afastados e agora sem a necessidade de proteger, ela também conseguia desviar dos tiros que vinham em sua direção e se aproximava dos inimigos numa velocidade impressionante.

Ela fazia parecer tão fácil que não hesitou em segui-la.

O problema era que não fazia a mais vaga ideia do que estava fazendo e, embora tenha conseguido uma arrancada graciosa, seus pés estavam completamente desordenados e a primeira coisa que fez quando precisou pegar impulso de novo foi tropeçar em si mesmo e cair com a cara na areia.

Seu ego foi estraçalhado com a certeza de que haviam pessoas o observando fazer isso.

A atenção da ômega era tão obvia que quase conseguia sentir em sua pele. Ela havia parado e estava conferindo se precisava voltar.

“Não há nada para ver por aqui!” – Declarou infantilmente, enquanto se levantava.

Apenas recebeu um aceno em resposta. Sempre lhe desconcertava como havia conquistado a confiança dela plena e completamente. Sabia que nem por um segundo ela cogitou a hipótese de que ele não conseguiria.

Satoru se colocou sob quatro patas novamente decido a não falhar com ela. De tudo nesse mundo, não havia nada mais importante. Não podia falhar com ela.

Era a sua vez de provar o gosto de sangue.

(...)

Mais fortes ou não, eles eram só filhotes...

Foi um massacre para aqueles que lhes desafiavam. A essa altura os dois companheiros já pareciam protagonistas do horror de um filme macabro, mas... sempre foi só por sobre uma questão de tempo até que conseguissem cansa-los.

Com o veneno correndo em suas veias e com os instintos confusos demais por todos os estímulos e necessidade constante de verificar o companheiro, estavam exaustos. Sustentados apenas pela adrenalina e pelo prazer da caça, os malditos conseguiriam os encurralar eventualmente.

Eles não fugiram como deveriam ter se impulsionado a fazer desde o inicio, porque queriam provar que não era uma boa ideia perseguir-los, que aqueles que os procurassem iriam se arrepender. O que, é claro, eles fizeram por um tempo.

Até que a realidade os atingiu.

O Gojo percebeu que a parceira havia ficado para trás em algum momento. Acontecimento incomum agora que haviam se sincronizado e passaram a atuar como a unidade que realmente eram, depois de sua introdução desajeitada.

Então ele parou a própria corrida e voltou para verifica-la, encontrando-a parada a poucos metros. Seu vinculo estava tão silencioso, mas a imagem de sua ômega era ainda mais assustadora.

Ela estava ofegante, com a língua pendendo para fora e olhos nublados, quase cegos. Um som de dor saiu de seu peito ao se aproximar e isso foi respondido com um gemido baixinho, tão sofrido que o fez entrar em pânico.

Aquela que viria a ser Uyara pendeu para frente e seu companheiro a sustentou em seguida, abaixando-se com cuidado.

A toxina dos tiros estava matando o lobo dela, levando-a para um limite que a forçava a voltar para a forma humana. Porém, ainda pior do que isso, ela estava assumindo a sua própria demanda de cura, já que sua inexperiência o levou a ser muito mais ferido do que o esperado e isso drenou todas as reservas de energia dela muito mais depressa do que a situação por si só faria.

Não era algo que conseguiam controlar. Não havia como parar. Se ela se transformasse agora, seu ômega ainda se encarregaria do mesmo fardo e a destruiria no processo.

Malditos filhos da puta, ele sabiam exatamente o que estavam provocando.

Ainda estavam atacando de volta agora que foram obrigados a recuar pela primeira vez, sabiam que eram como animais prontos para o abate.

Satoru os observou com seu assustadores olhos radioativos e contemplou as suas escolhas, que não eram muitas, mas uma coisa passou por sua mente: além de não poderem, aquelas pessoas não pareciam interessadas em elimina-lo. Em incapacita-lo, com certeza, mas não estavam sendo totalmente letais.

Uma possibilidade passou por sua mente e ele odiou cada um de seus inimigos por causarem o agora. A única chance que sua parceira sobreviver era se ela não fosse usa parceira, exatamente o que todos queriam.

Sua preciosa Himawari precisaria quebrar o seu lado do vinculo e fugir enquanto ele se usava de distração. Mas ela nunca concordaria em deixa-lo. Nunca. A menos que fosse obrigada.

“Querida...” – O apelo mental não pareceu alcança-la. – “Olhe para mim.”  - Mas a ordem o fez, trazendo o que restava de sua sanidade para ele. Nunca antes havia sentido tanto desprezo de si mesmo. – “Você sabe que eu vou ficar bem desde que você esteja bem. Sabe porque sente a mesma coisa. Eu preciso que você fique bem e isso não vai acontecer se você ficar aqui.”

“Não vou deixar você.” – Seu protesto era fraco e doloroso.

“E eu não quero que você faça isso, mas é o que vai acontecer se não nos separarmos agora.” – Satoru agradecia ao seu estado tão fragilizado para que ela acreditasse em sua segurança sobre o agora. – “Preciso que solte o seu lado do vínculo por enquanto e fique longe.”

“Mas eu não quero...”

Aquele monstro sofrendo diante dele o dilacerava mais do que qualquer ferida.

“Eu prometo não soltar você, tudo bem? Se concentre em viver e eu vou te encontrar de novo.” – Sua cabeça grande e felpuda estava pressionada contra a dela, enquanto sabia que ela conseguia sentir o quanto essa ideia o machucava.

“Satoru. Eu não consigo. Não consigo fazer isso.” – E ele entendia porque também sabia que seria incapaz se lhe pedisse o mesmo. – “Mas acho que você esta certo... eu só... preciso que me obrigue.”

Ambos sabiam que aquilo era um até logo e não um adeus. Confiavam um no outro para fazerem dar certo.

Porém isso não o tornava menos doloroso.

“Ômega.” – Seu corpo estremeceu e o do alfa também, em puro desgosto a si mesmo. – “Vá embora e não volte para mim até que eu te peça.” – Ele viu seus olhos perdendo o brilho conforme seu corpo começava a obedecer, mesmo que não houvesse nenhuma resistência ou discordância, lhe parecia tão errado que queria retirar as próprias palavras imediatamente. “Quebre o seu lado do vínculo, deixe de me considerar o seu alfa, volte para a forma humana e fuja daqui.”

Sua mente começou a falhar depois disso, fruto do rompimento que havia pedido. Suas memórias se distorceram e se embaralharam em agonia, enquanto entrava em pura tormenta.

Satoru não viu a companheira voltando a forma humana de fato, já estava perdido demais em si mesmo quando ela ainda o observava de longe. Sua amada lhe concedeu apenas aqueles gesto de rebeldia a ordem, cansada e fraca demais para fazer mais do que isso.

Ver o assustador lobo branco enlouquecendo e perdendo qualquer migalha de humanidade que ainda o restava de certa forma a tranquilizou. A imensidão do poder do outro sempre a acalmava.

Sabia que só precisava ser paciente. Nada nesse mundo era capaz de ficar em seu caminho por muito tempo.

Foi de sua escolha deixar o companheiro para trás, afinal, havia maiores problemas para lidar agora. Como, por exemplo, o lobo de pelagem preta que estava a seguindo.

A ômega soltou um suspiro exausto e prosseguiu o próprio caminho, em busca de furtar as roupas e armas de alguém. Sua luta não havia acabado ainda, mas não estava tão preocupada com isso, a marca em seu pescoço não deixava que se preocupasse com isso, já que agora estava se alimentando da força do outro sem precisar retribuir.

Ela podia esperar até que ele a pedisse de volta. Era uma mulher paciente.

E os dois sempre foram adeptos de que, se realmente quisessem, poderiam moldar o mundo a sua vontade com suas próprias mãos.



Jujutsu Kaisen - InadequadaOnde histórias criam vida. Descubra agora