O coração da criatura nas trevas na cúpula do altar fremia de ódio... o invasor tinha sido obliterado, mas o monstro ainda conservava uma estranha sensação de perigo, de ameaça constante. Um barulho repentino a deixou em alerta total novamente, não sabia onde o invasor estava, contudo tinha certeza que era ele. Um, dois, três sacerdotes gritaram em sequência, do lado leste, nas câmaras íntimas. O invasor tinha se salvado da queda, das criptas e tinha conseguido voltar à igreja e agora assassinava os sacerdotes no monastério. O monstro foi alastrando seus tentáculos escuros pela nave do templo, procurando pistas, tateando pelos corredores com dezenas de filamentos até que finalmente encontrou um pedaço de pano rasgado que era a túnica do invasor, isso indicava que esteve tanto no lado leste quanto no lado oeste do monastério e a julgar pelo silêncio tinha abatido toda sua guarda. Mas o monstro não sentia a presença do luar, e isso permitia que ele se movimentasse com mais liberdade. Ele encontrou o corpo de todos os Sacerdotes Obscuros nos corredores de cima, e deslocou o avatar para quase na porta da igreja afim de alcançar o local onde os Sacerdotes Obscuros costumavam fazer a guarda dele, e de lá ele estendia tentáculos e filamentos em todas as direções, pois tinha perdido o rumo do invasor mais uma vez.
Mas o cavaleiro podia vê-lo, finalmente, pelo buraco no teto da igreja, dezenas de metros acima, onde antes, do mesmo ponto onde o avatar maligno estava naquele momento ele viu a torre do sino. E ele tinha aproveitado bastante o tempo e a surpresa, conseguira matar todos os guardas e agora investia contra a viga de sustentação do sino com a espada antiga, cavando na madeira velha a solução de seu problema. Quando a armadilha enfim estava pronta ele preparou o arco. Passou o dedo pela cerda da flecha testando seu alinhamento. Concentrado ele esticou a mão do arco à frente e puxou a corda e a flecha para trás, com habilidade. A mão da flecha roçava na viseira, mirando. Ele deveria fazer correto, acertar a criatura a 50 metros de distância. A corda do arco emitiu um silvo característico quando ele atirou a flecha. E antes que cavaleiro terminasse o movimento de abaixar o arco, a flecha foi cravar no coração do avatar, arrancando do monstro um urro terrível e assustador. O cavaleiro sabia que isso não o mataria, mas ele tinha um plano...
A reação do monstro foi quase imediata, ele deslocou a coluna de tentáculos pela abertura na direção do ataque e o impacto soou como um terremoto, abrindo uma fenda na pedra lisa e no calcário da torre. Então a viga cedeu e o sino escorregou pela abertura num tinir estranho e inesperado, caindo sobre a cúpula ainda perfeitamente preservada do altar. O buraco que se abriu sobre o coração do Temor antigo, deixou-o exposto para a luz, mas malgrado do plano do cavaleiro ter sido bem sucedido, não havia mais luz da lua. O cavaleiro sentiu o chão faltar sobre os pés quando a torre finalmente começou a se inclinar sobre a igreja, então tudo ruiu... torre, igreja... tudo escombros.
Sobre o que antes havia sido o teto da construção o cavaleiro jazia sem partes importantes da armadura, a perna esquerda esmagada sob uma pedra e o braço esquerdo com uma fratura exposta. Sentindo o rumor de algo abaixo de si. Avatar e coração eclodiram da sepultura de escombros, superando as toneladas de peso com muito mais ódio que antes e se preparavam para atacar.
O cavaleiro puxou a pedra que o esmagava para um lado, felizmente ela estava solta, apesar de sua perna quebrada, e ele pode sentar, a criatura vibrava e rosnava, tentáculos pontiagudos alternavam com as centenas de bocas que a exposição ao lado de fora da igreja causava, mas a madrugada estava escura, nuvens densas cobriam o luar. O Poderoso Sangue teria rido dessa tentativa maluca de vencer a fera? O cavaleiro queria manter a fé intacta, enquanto encarava de frente a loucura daquela situação.
A coisa estava ferida, o coração sangrava e o avatar se arrastava usando os tentáculos e os braços, agora finalmente visível a ligação entre as duas partes, pulsando como um cordão umbilical maldito. Os filamentos, seguiram o cheiro do sangue, encontraram o cavaleiro sentado, praticamente sem nenhuma resistência. O primeiro tentáculo acertou a perna que estava inteira e arrancou a armadura, lacerando a carne. O cavaleiro gritou dentro do elmo, depois com a mão boa tirou-o e o botou de lado. Sorria, estava encarando o fim iminente. Meteu a mão por dentro da túnica. A criatura ia destruí-lo, sem dúvidas, mas ela certamente iria sofrer amaldiçoada, pela sua persistência e determinação.
Ele retirou a carta alongada do arcano do tarot do sangue... era O Verme. Ele sorriu brevemente e falou as palavras mágicas. O avatar parou. Começou a se debater, levantou e caiu. Do buraco aberto causado pela flecha, milhares de vermes brancos começaram a despencar, decompondo-o de dentro para fora. A coisa berrou com suas mil bocas. Mas antes que o avatar contaminado fosse o canal para que os vermes alcançassem o núcleo do monstro o próprio coração cortou o cordão, sangrando piche em agonia, mas ainda vivo o suficiente para matar o cavaleiro, enquanto o avatar se debatia nos estertores da decomposição acelerada.
Não havia mais recursos, o cavaleiro não tinha mais nada, aquela tinha sido sua última magia, não possuía espada nem condições de brandir uma arma, caso a tivesse. Ele tinha feito o possível, tinha machucado o Temor até quase matá-lo, mas era isso. Nem sempre a coisa sai como a bravura pensa. O coração da fera tinha sua própria boca imensa e se arrastava lentamente para devorá-lo, certamente iria transformar seu corpo no próximo avatar maligno que lhe permitiria sair dali e voltar a amaldiçoar outro lugar. Não tinha como evitar.
No entanto, na última hora, quando estava prestes a ser devorado, o horizonte abriu-se num novo dia. O primeiro raio da manhã, da luz do verdadeiro sol perfurou as nuvens densas e atravessou a coisa obscura queimando-a quase imediatamente. Ela se debateu em agonia, se encolheu e se alongou algumas vezes, tentando escapar, mas na superfície escapar do sol é inútil. A carne maculada do monstro se enrijeceu, depois contraiu em dores reveladas pelo tremor agudo de suas fibras e num último grito antes de pegar fogo de vez ela deixou escapar uma única palavra inteligível. "Morte".
O cavaleiro recostado nos escombros inclinou a cabeça na direção do sol. Estava feliz por estar ali agora, salvo pelo Primeiro-Irmão, quem diria... Diante de si o coração retorcido se dissipava com a brisa feito em cinzas, até que restou apenas uma pedra lapidada e escura, como uma opala. "Morte..." ele repetiu, finalmente, lembrando da cena final da criatura. Não naquele dia. O dia estava nascendo.
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O coração nas trevas
Short StoryUm cavaleiro devoto precisa concluir sua missão a despeito do que há na escuridão de uma igreja amaldiçoada.