Tela Branca

64 4 0
                                    

         Pinceladas na tela, feitas com cautela. Por dez jovens pintando o busto de Marco Aurélio, dentro de um grande ateliê. Sendo o mais belo, de Marcelo um jovem pardo de cabelos cacheados de roupas desleixadas que não combinam em nada. Ele pinta o rosto de Marco Aurélio com a mais pura delicadeza e destreza. Sua pintura está tão fiel que chega a parecer um retrato, ele cuida para que cada pincelada mantenha uma simetria e uma boa forma, que pareça realmente com a inspiração. 

     Uma mulher mais velha, usando um avental de varias cores, imundo pela tinta, e com uma boina ridícula entra pela porta contraria de onde os jovens estão. Ela tem um grande sorriso e diz a eles ao ver o andamento dos quadros:

—Que coisa linda! Gabriela, seu busto está lindo! Marcelo, o seu está ótimo também! —Sua empolgação seguida de sua voz altamente irritante deixa todos na sala desconfortáveis, menos Gabriela que sorri e com sua voz igualmente insuportável responde:

—Obrigada! Eu pinto muito mesmo.

     Marcelo expira quando ela fala e fica com seu padrão olhar vazio. E logo em seguida uma outra garota, de cabelos azuis a seu lado, uma amiga desde o inicio do curso, cujo a pintura está mais deformada comenta com ele cochichando:

—Elas são um saco mesmo, não acha?

—Concordo plenamente. —Responde ele esboçando um sorriso leve.

—Ela só é elogiada porque é puxa saco! Eu pinto bem melhor que ela... —Antes de terminar a frase a professora coloca a mão no ombro da faladora e lhe diz com a voz franzindo:

—Por outro lado, temos esta pintura meio irreal! Você não melhorou nada, Roberta.

—Marilda, eu já disse, eu gosto mais de artes abstratas. -Responde a garota impaciente.

—Essa é uma aula de natureza morta! Tem que fazer o que eu mando! Por que não faz como Marcelo? Veja, a pintura dele está idêntica ao que eu pedi! -Exclama Marilda gritando e demonstrando nojo ao ver a pintura da moça, sendo esta o rosto do imperador se desfazendo com diferentes cores e no centro um pilar grego sustentando o formato de seu rosto. O cenário se desfaz também com linhas tortas e irreais.

—Desculpa professora. A próxima eu pinto como a senhora pedir. —Responde Roberta com um falso e grande sorriso no rosto.

—Que bom, agora por favor podem guardar os matérias pois estão liberados! Lembrem-se da tarefa de conclusão do curso. Quero todos com seus trabalhos até o mês que vem!

     A sala inteira limpa os pinceis, guardam suas tintas e cobrem as pinturas deixando os cavaletes por lá. Saem um por um sendo os últimos Marcelo e Roberta. Eles seguem por um corredor passando por várias salas do conservatório onde estão, logo o garoto elogia a garota dizendo:

—A Marilda não sabe de nada, sua pintura tava linda.

—Acha mesmo? —Indaga ela segurando um de seus braços com vergonha.

—Sim, sua arte é desorganizada e tão bonita, ela me faz pensar que a desordem é o normal.

—Bom, eu nunca a fiz pensando assim.

—Pensando bem, a sua foi a mais criativa. O Marco Aurélio não era um imperador filosofo? Acho que você quis dizer que a filosofia dele é como o pilar de sua mente.

—É exatamente isso! Você é bem esperto.

—Obrigado! E ai, qual vai ser sua pintura pro projeto?

—Eu vou fazer um autorretrato meu pintando a mim mesma. E você?

—Não faço ideia, eu não sei o que é importante pra mim a ponto de ser o tema da minha pintura.

—E sua família? Podia pintar eles.

—Já fiz isso ano passado, eu fiz uma pintura realista deles e meus amigos.

—Então não sei como posso te ajudar, desculpa.

—Tudo bem, eu pinto em um dia.

Eles finalmente entram na recepção após alguns minutos nos corredores, e veem pela janela uma chuva ventosa. Toda a sala reclama ao vê-la dizendo "de novo". Uma chuva forte nesta cidade é o padrão, mas ninguém gosta de andar na tempestade. Marcelo demonstra indiferença quanto a chuva, mas Roberta fica preocupada e comenta:

—Eu pintei o cabelo ontem! Se molhar vai ficar horrível!

—Eu moro aqui do lado, não ligo de pegar chuva, se quiser meu guarda-chuva... —Responde o jovem com a mesma cara de sempre.

—Sério? —Roberta fica muito animada.

—Sim, pode levar. —A garota da um forte abraço no amigo, que fica claramente desconfortável com o toque, mas por convenção coloca a mão nas costas dela retribuindo o abraço e deixando claro a diferença de altura deles, Marcelo é muito mais alto.

     Roberta pega o guarda-chuva e vai embora sumindo nas lagrimas celestes, e Marcelo apenas coloca a toca de seu moletom do Batman. Ele atravessa a rua pela faixa de pedestre e vai até o menor prédio do outro lado, onde abre o portão e sobe as escadarias até o terceiro e ultimo andar. Ele pega a chave, abre a porta e entra numa sala totalmente arrumada, chega a brilhar. Os moveis são rústicos e tem uma televisão plana e um pouco grande. Ele desvia de lá e vai até um corredor a esquerda onde vira na primeira porta, entra e a fecha. Está em seu fedido e desajeitado quarto. A cama está cheia de roupas sujas, o chão não é limpo á dias, tem varias embalagens de salgadinhos e bolachas soltos por ai. Sua mesa com muitos papeis amassados e o armário arrombado. Ele apenas se deita na sujeira e solta um singelo sorriso tranquilo. Ele enfia a mão debaixo de seu travesseiro, de lá tira uma folha de papel dobrada, após o abre, nele está escrito como titulo "Trabalho De Pintura" e logo abaixo "Tema: Pinte algo importante para você.". Marcelo a contempla, pensativo. Ele pensa tanto que acaba a jogando para trás raivoso. O jovem se senta, e respira, levanta-se, puxa a cadeira de sua escrivaninha e nela senta, se aproxima da mesa amontoada de roupas e as arrasta de lá jogando-as ao cão. Na escrivaninha, tem algumas gavetas, Marcelo abre a primeira e tira algumas folhas em branco junto a um lápis, e então começa a desenhar sua amiga do curso. Ele a desenha com um grande sorriso no rosto, faz seu cabelo azul misturar-se com o céu ensolarado, e quando olha pela janela vê apenas nuvens cinzas que lhe removem o sorriso.

Após algumas horas fazendo vários desenhos sem comer ou beber nada, uma mulher mais velha e baixa entra em seu quarto segurando um sexto com roupas. Ela fala irritada:

—Marcelo! Eu mandei você arrumar seu quarto!

—Foi mal mãe, eu acabei me distraindo, eu arrumo depois. —Responde o garoto apático.

—Você fala "depois" á meses! Mas nunca faz absolutamente nada além de desenhar! Nem sair para arrumar um emprego.—Grita a mãe.

—Sair como? Ta caindo o mundo lá fora. —Comenta Marcelo ainda apático.

—Você tem guarda-chuva. Vai procurar um emprego, seu irmão vai se casar em um mês e seu primo ta se formando. —Retruca a moça elevando o tom de voz.

—Tá bom, mãe... — Responde o garoto demonstrando tristeza.

     A senhora sai do quarto espirando. Marcelo admira o desenho que fez de Roberta, mas ao lembrar-se do que sua mãe disse se entristece e abaixa a cabeça. Observa o desenho, exclama "Que coisa horrível!" e o amassa pensando na fala da senhora. Contemplando aquele quarto horrível, escuro, onde o lixo o deixa triste, mas ele não tem coragem de limpar, se constrange, encolhendo-se num canto como se estivesse preso na própria sujeira.

     Marcelo se recompõe. Pega outra folha e desenha apenas o sol, ao vê-lo por lá abre um grande sorriso. Sua calça vibra, é o celular, ele o apanha e vê uma mensagem de sua amiga, uma foto dela num café com a legenda "é aqui perto do conservatório, se quiser podemos vir aqui qualquer dia.". O garoto responde com "Ah, pode ser.". A garota não manda mais nada e Marcelo coloca suas mãos no rosto desesperado perguntando a si mesmo "Por que você não fala pra ela? Porque é sempre tão seco?". Num ataque de raiva de si ele bate na mesa jogando seus desenhos para o chão e logo deita em seu colchão. Lá ele adormece. 

Nuvens de TintaOnde histórias criam vida. Descubra agora