É bem sabido que a feijoada é um prato apreciado pela maioria dos brasileiros, grande representante de nossa culinária e etnologia; ora disputa-se muito a respeito de sua origem. Alguns dizem que é derivado da cozinha portuguesa; outros, que é um fruto do engenho da senzala; há ainda quem diga que veio da França ou dos índios. Minha opinião, que dou sem que me seja solicitada, é de que seja uma grande coincidência em escala internacional, internacional porquanto o feijão, sendo comum no Novo Mundo como no Velho e fazendo parte da cozinha típica de tantas terras, o mais provável é que tenham todos inventado o prato à sua maneira independente uns dos outros, sendo a feijoada brasileira apenas um espécimen. Por exemplo, se prestarmos atenção, dar-nos-emos conta de que a feijoada é, a grosso modo, um cassoulet com feijões pretos ou um chili con carne suino! Mas apesar de toda essa variedade étnica, pode-se inferir a existência de uma regra tácita ditando a preparação adequada, e bofé que as leis tácitas inspiram mais temor do que as escritas pelo imediatismo e a gravidade das conseqüências atribuídas a sua transgressão, portanto não requerem muito entendimento ou explicitação da parte de um legislador... Mas como há sempre derrogações e casos especiais, deixemos de lado o feijão e toda a sua legislatura tácita ou expressa.
Em agosto, fui ao encontro de um casal de amigos que me convidara a passar o dia; não havia ocasião extraordinária, e nesses casos tudo é pretexto à alegria jovial de um encontro entre amigos de longa data. Beto acomodou-me calorosamente no sofá e junto à sua esposa, Damaris, começamos a palrar. Resvalamos naquele sofá todas as concupiscentes fofocas de nossos colegas de trabalho, e àquela altura o vinho já tinha com o que vilipendiar nossas reputações dado o teor da conversa, firmando assim um pacto que nos condenara à união, de igual modo que uma seita une seus fiéis mediante medo da exposição.
Chegada a hora do jantar a refeição já estava quase pronta, faltava apenas dar cara à salada. No almoço, o qual perdi pois encontrava-me absorto em meus afazeres matinais, o casal deliciara-se de uma feijoada –vedes, leitores meus, que meu adendo sobre a feijoada não foi mero pretexto para aborrecer-vos? –. Nas palavras de Damaris a feijoada do almoço estava deliciosa, lástima era de eu não a ter provado em sua virgindade –refiro-me à feijoada – o que mais tarde se me revelou grande tragédia. Beto era de feitio inquieto e pueril no tocante à sua forte inventiva, dava-lhe gosto mexer nas coisas e cria-las à sua maneira, e para tal tinha talento (decerto tal aptidão o fizera bom grafista); no entanto é salutar reconhecer que com um único instrumento não se faz orquestra, lição que Beto, teimava em ignorar.
O que sucedeu no preparo do jantar, que se limitava à preparação da salada, foi que o engenho limitado, conquanto de imparável possança, do qual dispunha Beto lhe deu voz ativa. Beto sentiu despontar o gosto natural pelo design e fez-se designer alimentício. Chamou-lhe a atenção um saco com folhas de absinto compradas durante uma viagem à Savoia, e pareceu-lhe de bom tom salpica-las sobre a feijoada já perfeita, prefiro acreditar que foram os quentes ares estivais a afetar seu juízo. Nem Damaris nem eu imaginávamos o que fazia Beto sozinho na cozinha, pois o crime não era premeditado. Lembra-me vagamente que minhas narinas me sussurraram ao aproximar do vestíbulo da cozinha "Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança! " Como fosse sinal divino.
Ao adentrar o cômodo, estava lá Beto mimoso e cheio de satisfação, Damaris e eu, ao perceber que Beto aprontara algo, olhamo-nos aflitos –afinal não era a primeira vez. Quanto a mim, optei pelo silêncio e deixei cair sobre a esposa o fardo de emitir uma opinião sobre a tal feijoada. Ri-me inicialmente, mas em seguida ergui o garfo, pu-lo no arroz e em seguida no feijão e então levei o todo à boca; senti-me envenenar, o amargor apossava-se de minhas bochechas. Não havia sequer um gosto discernível, apenas tormenta. Minha língua, macilenta, não queria mais empurrar aquela gororoba goela abaixo; servi-me, então, de um gole d'água e acudi ao aceno curioso de Beto "Nossa..." não terminei minha resposta. Precisava ser sincero, mas não escatológico –dura tarefa, considerando o sabor de sua obra – e como havia zombado e proferido atrocidades sobre outros na sessão de fofoca, tinha de mostrar que não dizia más coisas apenas pelas costas; o maldizer pesa, fino leitor, ele obriga ou à rudez e descortesia ou à falsidade descarada.
Busquei o equilíbrio, sábia decisão, e malgrado o dissabor de minhas palavras a respeito da tragédia a que acometera o pobre feijão, e do desrespeito às receitas de antanho que nos proporcionam deliciosas feijoadas, cassoulets e chilis... Lembrei-o do grande ditado anglo-saxão "if it ain't broken, don't fix it" ora, assim como não há pagamento sem dívida, não há reparo sem defeito; o primeiro chama-se enriquecimento injustificado e o segundo, desserviço. Acredito, destarte, que ajudei meu amigo, ou ao menos o motivei a expandir seus horizontes.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Tragédia do Feijão
Short StoryUma feijoada problemática e uma lição sobre honestidade, tudo isto numa anedota tragica e leve.