ASSIM QUE PONHO OS PÉS NO SALÃO, percebo que a maioria das pessoas está quase morta, inclusive eu. Fui informada por fontes seguras de que a melancolia pós-Natal é absolutamente normal e que deveríamos nos sentir meio entorpecidos depois do período “mais feliz” do ano, mas não me sinto
tão diferente em comparação à véspera de Natal ou ao próprio Natal, ou a qualquer outro dia desde que as férias começaram. Estou de volta, e é um outro ano. Nada vai acontecer.
Fico parada. Becky e eu nos entreolhamos.
— Tori — diz Becky —, você está meio com cara de quem quer se matar.
Ela e as outras pessoas do Nosso Grupo se espalharam em uma série de cadeiras giratórias ao redor das mesas de computador. Como é o primeiro dia depois do recesso, percebo que todo mundo do ensino médio fez maquiagem e cabelo, e logo me sinto deslocada.
Eu me encolho em uma cadeira e concordo filosoficamente.
— É engraçado porque é verdade.
Becky olha para mim mais um pouco, mas sem prestar atenção de verdade,
e rimos de algo que não teve graça. Então ela percebe que não estou a fim de fazer nada e se afasta. Eu me apoio nos meus braços e chego a adormecer.
Meu nome é Victoria Spring. Acho que você precisa saber que invento
uma porção de coisas e depois me lamento. Gosto de dormir e de blogar. Um dia, vou morrer.
Rebecca Allen provavelmente é minha única amiga de verdade. Ela
também deve ser minha melhor amiga. Ainda não sei bem se esses fatos estão ligados. De qualquer maneira, Becky Allen é muito linda e tem cabelos compridos e roxos. Cheguei à conclusão de que se você tem cabelos roxos as pessoas olham para você. Se você for bonita e tiver cabelos roxos, as pessoas ficam olhando para você, o que faz com que você se torne muito popular na sociedade adolescente; o tipo de pessoa que todo mundo diz que conhece, mas com quem provavelmente nunca nem conversou. Becky tem 2.098 amigos no Facebook.
Neste exato momento, ela está falando com outra menina do Nosso
Grupo, Evelyn Foley. Evelyn é considerada “retrô” porque tem cabelos bagunçados e usa um colar com um pingente em forma de triângulo.
— Mas a verdadeira dúvida é se existe atração sexual entre Harry e Malfoy
— diz Evelyn.
Não sei bem se a Becky gosta mesmo da Evelyn. Às vezes, acho que as
pessoas só fingem gostar umas das outras.
— Só em fanfics, Evelyn — retruca Becky. — Por favor, guarde suas
fantasias entre você e seu blog.
Evelyn ri.
— Estou falando por falar. O Malfoy ajudou o Harry no fim, certo? No
fundo, ele é um cara legal, não é? Então, por que persegue o Harry por sete
anos? Enorme. Armário. Homossexual. — A cada palavra, ela bate palmas. E
não deixa claro o que quer dizer. — Todo mundo sabe que as pessoas ficam provocando quem elas gostam. A psicologia aqui é indiscutível.
— Evelyn — diz Becky. — Primeiro de tudo, essa ideia de fãzinha de que o
Draco Malfoy é uma alma lindamente torturada que está à procura de
redenção e compreensão me afronta. Em segundo lugar, o único casal não
canônico que não tem a ver com a história e que vale a pena discutir é Snilian.
— Snilian?
— O Snape e a Lilian.
Evelyn parece estar muito ofendida.
— Não acredito que você não apoia Drarry, mas é a favor de Snape e
Lilian. Quer dizer, pelo menos Drarry é uma possibilidade realista. — Ela
balança a cabeça devagar. — Tipo, obviamente, a Lilian escolheu alguém sensual e hilário, como o Tiago Potter.
— O Tiago Potter era um grande babaca. Ainda mais com a Lilian. A J.K.
deixou isso bem claro. E, cara... se você não gostar do Snape até o final da série, é porque não entendeu nada de todo o conceito de Harry Potter.
— Se Snilian tivesse rolado, o Harry Potter não teria existido.
— Sem um Harry, o Voldemort talvez não tivesse, tipo... cometido genocídio.
Becky e Evelyn se viram para mim. Deduzo que estou sendo pressionada a contribuir com o assunto.
Eu me sento.
— Você está dizendo que, como é culpa do Harry todos aqueles trouxas e bruxos terem morrido, teria sido melhor que não tivessem existido Harry Potter e os livros, filmes e tudo?
Tenho a impressão de que arruinei a conversa, então murmuro uma
desculpa qualquer, me levanto da cadeira e saio correndo do salão. Às vezes, odeio as pessoas. Isso provavelmente é bem ruim para a minha saúde mental.
Há dois colégios na minha cidade: o Harvey Greene Grammar School para Meninas, ou Higgs, como é conhecido, e o Truham Grammar School para
Meninos. Mas os dois aceitam meninos e meninas no segundo e terceiro anos do ensino médio. Agora que estou no penúltimo ano, tenho que conviver com uma quantidade repentinamente maior de meninos. Os garotos do Higgs são feito criaturas místicas, e ter um namorado de verdade coloca você no topo
da hierarquia social, mas, pessoalmente, pensar ou falar demais sobre “assuntos de garotos” me dá vontade de cometer suicídio.
Mesmo que eu me importasse com essas coisas, não daria para ficar me
exibindo por aí no colégio, graças ao nosso lindo uniforme. Normalmente, o pessoal do ensino médio não tem que usar uniforme, mas os alunos do Higgs
são obrigados a usar um modelo horroroso. Cinza é a cor predominante, o
que combina bem com um lugar tão chato.
Chego ao meu armário e encontro um Post-it cor-de-rosa colado na porta.
Alguém desenhou uma seta apontando para a esquerda, sugerindo que, talvez,
eu devesse olhar nessa direção. Irritada, viro a cabeça para a esquerda. Vejo
outro Post-it alguns armários adiante. E na parede no fim do corredor, mais
um. As pessoas estão passando por eles, absortas. O que posso dizer? Elas não
são observadoras. Não questionam coisas assim. Nunca pensam duas vezes no
déjà vu quando poderia haver um erro na Matrix. Passam por mendigos na rua e nem sequer veem sua desgraça. Não analisam a psicologia que motiva os
criadores de filmes de terror, quando provavelmente todos eles são psicopatas.
Arranco o post-it do armário e sigo até o próximo.
Às vezes, gosto de preencher meus dias com coisinhas para as quais as outras
pessoas não ligam muito. Tenho a sensação de estar fazendo algo importante,
ainda mais porque não tem mais ninguém fazendo isso.
Agora é um desses momentos.
Os Post-its começam a aparecer em todos os lugares. Como eu disse, as
pessoas os ignoram; estão cuidando dos seus afazeres e falando sobre garotos,
roupas e coisas fúteis. As meninas do oitavo e nono anos passam com a saia
enrolada na cintura e as meias que chegam às coxas. Elas sempre parecem
felizes. Isso faz com que eu as odeie um pouco. Mas odeio um monte de
coisas.
O penúltimo Post-it que encontro tem uma seta apontando para cima, ou
para a frente, e está preso na porta de uma sala de informática fechada no
primeiro andar. Um tecido preto cobre a janela da porta. Essa sala, a C16,
ficou fechada durante todo o ano passado para reforma, e parece que ninguém
quis estreá-la. Isso me deixa meio triste, para falar a verdade, mas entro na C16
e fecho a porta.
Há uma janela comprida ocupando toda a extensão da parede mais distante,
e os computadores são verdadeiros tijolos. Cubos sólidos. Parece que viajei no
tempo de volta aos anos 1990.
Encontro o último Post-it na parede dos fundos, com um endereço:
SOLITAIRE.CO.UK
Se por acaso você vive numa caverna, se estuda em casa ou se você é um
idiota, Solitaire, ou Paciência, é um jogo de baralho para se jogar sozinho. Era
o que eu fazia para passar o tempo nas aulas de informática, e esse jogo
provavelmente ajudou muito mais o meu raciocínio do que prestar atenção na
aula.
De repente, alguém abre a porta.
— Santo Deus! A idade dos computadores aqui deve ser um crime.
Eu me viro devagar.
Um garoto está parado na frente da porta fechada.
— Estou ouvindo a sinfonia assustadora da conexão discada — diz ele,
olhando para todos os lados. Depois de alguns segundos, por fim percebe que
não é a única pessoa na sala.
Ele é um tipo bem comum, não é feio, mas não é lindo; um cara como
qualquer outro. Seu traço mais marcante são os óculos grandes, de aros grossos
e quadrados, parecidos com aqueles dos cinemas 3D que os meninos de doze
anos usam sem as lentes por acharem que ficam “radicais”. Caramba, odeio
quando as pessoas usam óculos assim. Ele é alto e usa o cabelo repartido. Em
uma das mãos, segura uma caneca; na outra, um pedaço de papel e seus
horários de aula.
Ao observar meu rosto, seus olhos brilham, e juro por Deus que dobram
de tamanho. Ele salta na minha direção feito um leão, com intensidade
suficiente para eu me retrair com medo de que acabe comigo. O garoto se
inclina para a frente, de modo que seu rosto fica a poucos centímetros do meu.
Pelo meu reflexo nas lentes ridiculamente enormes dele, percebo que tem um
olho azul e o outro, verde. Heterocromia.
Ele abre um grande sorriso.
— Victoria Spring! — grita, erguendo os braços.
Não digo nem faço nada. Estou com dor de cabeça.
— Você é a Victoria Spring.
Ele segura o pedaço de papel perto do meu rosto. É uma foto. Minha.
Embaixo, com letrinhas bem pequenas: Victoria Spring, 11 A. Esteve exposta
perto da sala dos funcionários — no primeiro ano, eu era líder de turma,
principalmente porque ninguém mais queria ser, por isso fui voluntária. Todos
os líderes foram fotografados. A minha foto é horrorosa. Foi antes de eu cortar
o cabelo, então estou meio parecida com a menina do filme O chamado. Parece
até que não tenho rosto.
Olho no olho azul.
— Você arrancou isso do quadro?
Ele dá um passinho para trás, recuando depois de invadir meu espaço. E
coloca aquele sorriso doido na cara.
— Eu disse que ajudaria alguém a procurar você. — Ele bate o papel dos
horários no queixo. — Loiro... calça skinny... andando por aí como se não
estivesse perdido...
Não conheço nenhum garoto e muito menos caras loiros que usam calça
skinny.
Dou de ombros.
— Como você soube que eu estava aqui?
Ele também dá de ombros.
— Eu não sabia. Entrei por causa da seta na porta. Pensei que parecia bem
misteriosa. E aqui está você! Que reviravolta hilária do destino!
Ele toma um gole da bebida. Começo a me perguntar se esse garoto tem
problemas mentais.
— Já vi você antes — diz, ainda sorrindo.
Eu me pego olhando o rosto dele com os olhos semicerrados. Certamente
já o vi nos corredores, em algum momento. Certamente me lembraria desses
óculos horrorosos.
— Acho que nunca vi você antes.
— Isso não é surpresa — comenta ele. — Estou no terceiro ano, então
você não me veria muito. E entrei no Higgs em setembro passado. Fiz o
segundo ano no Truham.
Está explicado. Quatro meses não é tempo suficiente para eu gravar um
rosto.
— Então — diz ele, tamborilando na caneca. — O que está acontecendo
aqui?
Dou um passo para o lado e aponto sem ânimo para o Post-it na parede dos
fundos. Ele estica a mão e o puxa.
— Solitaire.co.uk. Interessante. Certo. Eu diria que podemos ligar um
desses computadores para dar uma olhada, mas nós morreríamos até o Internet
Explorer carregar. Aposto o que você quiser que todos eles rodam com o
Windows 95.
Ele se senta em uma das cadeiras giratórias e olha para a paisagem pela janela. Tudo se ilumina como se estivesse pegando fogo. Dá para ver por cima
da cidade e até a zona rural. Ele percebe que também estou olhando.
— Parece que está puxando você para fora, não é? — comenta. E suspira
sozinho. Feito uma garota. — Vi um cara velho enquanto vinha para cá de
manhã. Ele estava sentando em um ponto de ônibus ouvindo um iPod,
batendo as mãos nos joelhos, olhando para o céu. Com que frequência você
vê isso? Um cara velho ouvindo um iPod. Fico tentando imaginar o que ele
estava escutando. Você pensa que poderia ser música clássica, mas pode ser
qualquer coisa. Talvez uma música triste.
Ele levanta os pés e os cruza em cima da mesa.
— Espero que não.
— Música triste é legal — falo —, com moderação.
Ele se vira para mim e ajeita a gravata.
— Você é a Victoria Spring mesmo.
Isso deveria ser uma pergunta, mas ele diz como se já soubesse há muito
tempo.
— Tori — digo, com a voz monótona de propósito. — Meu nome é Tori.
Ele ri de mim. É uma risada muito alta e forçada.
— Como Tori Amos?
— Não. — Paro. — Não, não como Tori Amos.
Ele enfia as mãos nos bolsos do blazer. Cruzo os braços.
— Você já esteve aqui antes? — pergunta.
— Não.
Ele assente.
— Interessante.
Arregalo os olhos e balanço a cabeça para ele.
— O quê?
— O que, o quê?
— O que é interessante?
Acho que não teria como eu parecer menos interessada.
— Nós dois viemos procurar a mesma coisa.
— E o que é?
— Uma resposta
Levanto as sobrancelhas. Ele olha para mim por trás dos óculos. O olho
azul é tão claro que quase chega a ser branco. Tem uma personalidade própria.
— Os mistérios são divertidos, não são? — pergunta ele. — Você não acha?
Então percebo que não acho. Percebo que poderia sair daqui e literalmente
não dar a mínima para o solitaire.co.uk nem para esse cara chato nunca mais.
Mas, como quero que ele pare de ser tão mandão, tiro o celular do bolso,
digito solitaire.co.uk na barra de endereço da internet e abro a página.
O que aparece quase me faz rir. É um blog vazio. Um blog troll, acho.
Que dia mais sem sentido.
Enfio o telefone na cara dele.
— Mistério resolvido, Sherlock.
A princípio, ele continua sorrindo como se eu estivesse brincando, mas em
pouco tempo seus olhos focam na tela do celular e, com cara de quem não
acredita no que vê, ele tira o telefone da minha mão.
— É... um blog vazio... — diz ele, não para mim, mas para si mesmo, e de
repente (e não sei como isso acontece), me sinto muito, muito triste por ele.
Porque ele parece extremamente triste. O garoto balança a cabeça e me
devolve o celular. Não sei bem o que fazer. Pela cara dele, parece que alguém
morreu.
— Bem, hum... — Eu mexo os pés. — Vou cair fora.
— Não, não, espere!
Ele se levanta de modo que ficamos um de frente para o outro.
Faz-se uma pausa desconfortável.
Ele me analisa, estreitando os olhos, então olha para a fotografia, e de novo
para mim, e de novo para a foto.
— Você cortou o cabelo!
Mordo o lábio, contendo o sarcasmo.
— É — digo sinceramente. — É, cortei o cabelo.
— Era tão comprido.
— Sim, era.
— Por que cortou?
Eu tinha saído para fazer compras sozinha no fim das férias de verão porque
havia muitas coisas que precisava comprar para o segundo ano, e meus pais estavam ocupados com todas as coisas que estavam acontecendo com Charlie,
e eu queria me livrar logo dessa obrigação. Só esqueci que sou péssima em
fazer compras. Minha mochila estava rasgada e suja, então passei por lugares
descolados: River Island, Zara, Urban Outfitters, Mango e Accessorize. Mas
todas as mochilas bonitas custavam tipo umas cinquenta libras, por isso não
daria certo. Tentei lojas mais baratas — New Look, Primark e H&M —, mas
todas as mochilas eram cafonas. Acabei andando um bilhão de vezes por todas
as lojas que vendiam mochilas, até ter um leve ataque em um banco perto do
Costa Coffee no meio do shopping. Pensei em como seria começar o segundo
ano e todas as coisas que eu precisava fazer e todas as pessoas com quem teria
que encontrar e todas as pessoas com quem teria que conversar, e vi meu
reflexo em uma vitrine da Waterstones e percebi, naquele momento, que a
maior parte do meu rosto estava coberta pelo cabelo, e quem, pelo amor de
Deus, conversaria comigo daquele jeito, e comecei a sentir o cabelo todo na
testa, no rosto e nos ombros e nas costas, e senti que eles me envolviam feito
minhocas, e me sufocavam até a morte. Comecei a respirar muito rápido, fui
direto ao cabeleireiro mais próximo e pedi que cortasse meus cabelos na altura
dos ombros e longe do meu rosto. O cabeleireiro não queria fazer isso, mas fui
muito insistente. Gastei o dinheiro da minha mochila em um corte de cabelo.
— Eu só queria que ele ficasse mais curto — respondo.
Ele se aproxima. Dou um passo para trás.
— Você não diz nada do que quer dizer, não é?
Dou risada de novo. É uma liberação ridícula do ar, mas, para mim, é uma
risada.
— Quem é você? — pergunto.
Ele congela, se inclina para trás, abre os braços como se fosse o Cristo
Redentor e anuncia com uma voz grave e ressonante:
— Meu nome é Michael Holden.
Michael Holden.
— E quem é você, Victoria Spring?
Não penso em nada para dizer, porque esta seria a minha resposta. Nada.
Estou num vácuo. Num vazio. Não sou nada.
A voz do sr. Kent surge de repente da caixa de som. Eu me viro e olho
para cima, para o alto-falante.
Todos os alunos do segundo e terceiro anos devem ir ao salão para uma reunião
rápida.
Quando me viro, a sala está vazia. Estou grudada no carpete. Abro a mão e
encontro o Post-its do SOLITAIRE.CO.UK. Não sei como o papel saiu da
mão de Michael Holden e chegou à minha, mas aqui está.
E é isso, eu acho.
É como provavelmente começa.
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Um ano solitário-Alice Oseman
Teen Fictionjá pra avisar que o livro não é meu,eu só vou escrever aqui pra quem não tem condição financeira para comprar o livro,mais é claro que ter o livro físico é mil vezes melhor,ent é isso, boa leitura