Eu tava pensando que vida inteira de uma pessoa cabe em três linhas de um curto obituário, mas hoje em dia ninguém lê obituário, nem circula jornal diário. A nossa vida se encurtou tanto que hoje cabe na inscrição da lápide e nenhum outro lugar faz centímetro a mais pra acomodar o dia de folga que não tiramos naquele início de agosto, quando fazia tanto frio.
Januária Oliveira Matos
14/01/1932 - 28/07/2004
Saudades eternas de seu esposo, filhas e netos.
Eu ainda me pego abrindo o site do jornal pra ler os obituários, procurando o nome de alguém que eu sei que já morreu, e acabo imaginando a vida de quem morreu hoje. Eu invento uma cara ao defunto na minha cabeça. Enxergo uma vida fugaz, saias de algodão, alpagartas gastas, carteiras de trabalho antigas, caixas de lata cheias de selos guardados. Misturo imaginação com lembranças e esse exercício me dói fisicamente com uma pontada numa vesícula que não existe no meu corpo, uma cicatriz que eu escondo atrás de uma artéria, uma queloide vergonhosa de uma memória opaca e constante.
Nome:E**** F*********Data do Falecimento:terça-feira, 8 de agosto de 2023Idade:96 ano(s)Profissão:DO LARNome do Pai:E***** T***Nome da Mãe:G******** T****Cônjuge:D****** J*** F*********Número da FAF:0*****/2023Local do Falecimento:HOSPITAL - SANTA CASALocal do Velório:CAPELA CEMITÉRIO JARDIM DA SAUDADE (CURITIBA)Local do Sepultamento:(CURITIBA) CEMITÉRIO JARDIM DA SAUDADE - CURITIBAData do Sepultamento:quarta-feira, 9 de agosto de 2023Funerária:M***** D*** (CURITIBA) (41) ****-****
Eu tenho achado que estou morrendo ultimamente. Minha visão está esbranquiçada, minhas mãos tremem e eu tenho rompantes de choro. Minha memória esvanescendo igual as letras de notas fiscais impressas no caixa do super mercado que, depois de anos, resta só a fita amarelada com os cortes em ziguezague nas pontas. Eu esqueço de pessoas que morreram, pessoas que já vi antes, coisas que fiz há dois meses, livros que li ano passado. Penso que estou ficando sênil, demente, me irrito comigo mesma diante dessa constatação e não sei diferenciar o que é realidade e o que é minha natureza hipocondríaca. E me pego pensando na E**** F*********. Do lar, 96 anos. Cônjuge no obituário. Ela deve ter vivido uma vida longa, comido bem, nunca ter passado necessidade. Era um tanto curva, de cabelos lisos e finos, que conservavam um louro turvo. Tinha sido muito bonita na juventude, temperada, tranquila. Nunca teve filhos, viveu a vida com seu marido, que ainda é vivo e de quem tomou o sobrenome. Pela filiação, foi mais uma das descendentes de polacos ou ucranianos ou judeus dispersos no leste europeu que vieram viver no Paraná. A maioria desses imigrantes chegou aqui no início do século XX, fugindo de perseguições religiosas, uma quantia modesta para tentar recomeçar a vida na América (quando ainda chamavam o continente por esse nome), signo de recomeço e possibilidade. Seus pais ou avós guardaram num armário robusto de jacarandá aquele castiçal, candelabro, não lembro o nome, mas aquela relíquia judaica que enchem de velas no Natal e na Páscoa, só que eles não chamam de Natal ou Páscoa. Esconderam a ancestralidade, adotaram santos católicos e plantaram uma roça no primeiro planalto paranaense. Essa é a história de boa parte dos que viveram aqui. Os pais dela devem ter sido como meus avós, podem ter aberto uma vendinha, uma verduraria, um armazém. Ergueram casa, mataram galinha nas datas, depois de algumas décadas mataram porco, esqueceram do nome do navio que os trouxe e atracou primeiro em Santos, da fábrica da Todeschini em que trabalharam, do Seu Ariovaldo que pagava em envelopes o seu salário, do tiro que Getúlio deu no peito, do bonde que passava na República Argentina, do dia em que voou por cima da cidade o Zepelim. Um dia eu também vou esquecer disso tudo, mas ainda não sei hoje se isso vai ser um fardo aliviado ou a morte de uma vida que quase começou, mas que nunca vingou.
Idade: 55 anos.
Idade: 96 anos.
Idade: 61, 65, 69, 40, 63, 63, 75, 65, 54, 61, 52.
Hoje, só a E**** morreu velha. Eu me recuso a chamar quem não passou de setenta anos de velho. Você vai ver as profissiões desses falecidos, dá pra ver que morreram de trabalhar. Meu Deus, ninguém teve o direito de morrer deitado. Um com 61 anos, garçom, barriga grande, redonda e firme. Outro com 63 anos, dedos tortos de uma vida de trabalho sem descanso, com artrite e artrose do calor da caldeira. 52 anos, técnico de telecomunicações, subindo em postes até o dia antes de morrer. Eu sou assombrada com visões desses homens encostados na soleira das portas, mortos num instante de descanso, mantidos em pé pela rigidez cadavérica, pela previdência social e pelo olerite, com descontos, de R$986. Eu quero enfiar meus dedos entre suas almas, como a gente enfia os dedos nos sacos de arroz do mercado municipal quando somos crianças, quero puxar de volta suas almas pra vida, esquentar seus corpos, tirar o algodão de seus narizes e dar uma segunda chance na vida pra eles. Quero que vão à praia, comam feijão, durmam depois do almoço, beijem seus filhos, principalmente seus filhos homens, que digam que os amam e que se arrependem de tudo.
Idade:52 ano(s)Profissão:TÉCNICO TELECOMUNICAÇÕES
Idade:61 ano(s)Profissão:GARÇOM
Idade:63 ano(s)Profissão:CALDEIREIRO(A)
Idade:65 ano(s)Profissão:PEDREIRO
Idade:55 ano(s)Profissão:MOTORISTA
Quem não me comove são os natimortos. Todos tem o mesmo corpo cor-de-rosa, úmido, quente e mole. Não tem pecados, nem anseios, nem desespero existencial.Eu peguei essa terrível mania antes mesmo de que ele morresse. Eu falo ele não como se você soubesse quem é ele, mas porque eu me sinto terrível em pensar, muito menos escrever o nome dele. Eu sabia que ele ia morrer antes que ele mesmo soubesse, então buscava seu nome periodicamente nos obituários. Se bem que não precisou, porque me ligaram no dia em que ele morreu e a bigorna que há 6 anos amassava meu peito foi levantada. Mas parece mesmo que eu estou pior depois que ele morreu. Não no sentido que primeiro vêm à mente, de quem sente muito o falecimento de alguém amado ou é acometido uma uma culpa póstuma de quem deveria ter reconciliado, dito coisas ou algo assim. Primeiro eu fiquei feliz e aliviada, com uma sensação de quem tira um sutiã apertado depois do dia inteiro. Já aconteceu isso com você? Aquela dor latente, que lateja timidamente ao longo do dia e que te dá um alívio imensurável quando você se livra daquela pressão cortante. Mas depois, é a ferida aberta, o corte na carne que arde e enlouquece, antes de doer pra cicatrizar e doer a queloide. Assim que ele morreu, eu comecei a ficar paranoica. Eu mantinha um pé na realidade, mas meus devaneios invadiam meu quarto sob uma luz vermelha, agarravam meus tornozelos e me arrastavam com ele pro inferno. Achei que morto ele me aterrorizava mais, porque uma alma maldita não é impedida pelo espaço, pelo concreto da parede ou pelo paradeiro desconhecido. Puxei do sótão uma tela velha, cobri de gesso acrílico e pintei a óleo o diabo, pra poder olhar nos olhos dele e transformar o capeta numa fera domável. Passou. Mas, com os anos, um câncer passou a comer meu cérebro por dentro. Eu acho que é ele. Eu esqueço as coisas, palavras, como amarrar os cadarços, assoviar com os dedos ou quanto sal colocar no arroz. Eu enxergo cada vez menos, ouço cada vez menos, e mergulho num abismo que me separa do meu corpo cada vez mais fundo. Não sei o que é pior: morrer encostado esperando o ônibus pra casa, ou esquecer da vida enquanto segue a pé prum endereço que não me pertence mais.
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a vida esquecida de hile czaika
Non-Fictionrecortes de obituários colecionados por uma velha dona de casa que não se lembra por onde começou, nem há quanto tempo faleceu sua vizinha