(Manchado)
O meu nome é Eron. Sou um sobrevivente do evento que ocorreu às 23h59 do dia 1 de outubro de 2022. Aqui, no meio de uma chuva carregada de incertezas em uma terça-feira de junho de 2025, marcho ao lado de outros sobreviventes liderados por um valentão que acredita ser o herói dos oprimidos e sacudia um revólver como se fosse um deus. Resumindo: um idiota.
Ele era um homem alto, forte e grande, branco e graças a herança do pai — outro idiota, acredite — possuía um arsenal militar em sua mansão. Estávamos abrigados por lá, um total de vinte e seis pessoas, porém esse número oscilava já que muitos morriam e novos chegavam de tempos em tempos. Em constante vigia tínhamos passado por alguns apertos, mas agora havíamos garantido uma posição segura naquela mansão. O bairro fora severamente atingido pelo caos enquanto lutávamos por nossa segurança. Tudo, e todos, meio que fora definhando, sumindo. Restaram somente ruínas e corpos soterrados nas casas pelas redondezas.
Eu? Bem, você já deve ter percebido que sou um tagarela, entretanto, estes são os meus pensamentos. Nada de demais. Na maior parte do tempo sou uma pessoa calada. Isso rendeu a mim um apelido desnecessário: assassino uivante. Assassino porque sou o responsável por matar — furtivamente — os invasores noturnos da mansão, e uivante devido ao som do meu facão sentenciando estranhos a agonia e lágrimas.
Sou um homem de estatura média, pele escura, olhos castanhos e careca, barba negra e grossa acompanhada por um bigode. Meu corpo é forte, nada exagerado, você consegue um visual malhado quando passa meses lutando por sua vida. Fui mais um dos perdidos que precisavam de um teto, o filho daquele senhor estendeu a mão para mim e aqui estamos nós: seis meses após vagar por escombros acabei servindo como cachorro de um moleque mimado para sobreviver. Que inferno.
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Quando a loucura dominou os governantes, o povo ficou encurralado. Às 23h59 foi anunciado o fim da ordem e a constituição acabou transformada em cinzas em rede nacional. No mesmo instante, a matança começou para ambos os lados da disputa. Aqueles que defendiam a supremacia da pele branca e dos mais ricos mandaram seus cães: a polícia corrompida. Os que pediam respeito e igualdade marcharam unidos, e havia alguns policiais entre esses que se apegavam ao que sobrara de ordem e progresso.
O choque das frentes resultou no inesperado: o povo sobrepujou os oficiais corruptos. Derrotados e humilhados com urina e chutes e socos, cada policial desviado fora linchado e tiveram aqueles que foram escravizados. O exército chegou, a maré não mudou, o povo era numeroso e mais forte. Multidões engoliram os militares com armadilhas e terror, não havia espaço ou equipamento suficiente para conter a população furiosa. Os peões da elite caíram em poucos meses.
Desesperados os burgueses foram para o combate alegando a necessidade de deter uma ameaça aos costumes, mas a verdade todos já sabiam: eles queriam garantir o mínimo de privilégios em uma sociedade estilhaçada. Foi a arrogância dos eleitos líderes que levou a nação ao caos. A infeliz decisão de acabar com os direitos humanos resultou no fim da paz-tão-frágil-e-mentirosa.
Eu vi o momento em que igrejas foram derrubadas pelas chamas, seus falsos pastores queimaram junto ou então foram mortos em público como as bruxas de outrora. Ninguém estava disposto a dialogar, não havia mais espaço para palavras sensatas, o desejo por vingança era muito forte.
As ruas ganharam rios de sangue. As luas nasceram vermelhas por longos seis meses. O sol fora ocultado por nuvens de cinzas.
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General FictionA menina, o manchado e o porco - personagens que cruzam nossos caminhos diariamente - entrelaçam suas vidas nos escombros de uma sociedade doente e perdida. Em meio as intrigas, depravações e balas perdidas; o tabuleiro no qual se encontram balança...