Nova York, 11-06-2015
Querido Diário,
Hoje cometi um erro horrível, cortei-me, pulso direito, conseguia sentir a minha artéria pulsar e depois do meu dia pensei que poderia fazer essa experiência, ver até quanto é que conseguia suportar a dor. Por isso desmanchei uma das lâminas de barbear do Paulo. Riscos vermelhos toscos cobriram o papel branco fazendo uma obra abstrata que remontava a Picasso. Doeu-me, lágrimas quentes e salgadas escorreram-me pela cara, mas não parei e continuei a pincelar, parei depois de 20 minutos. Lavei o pulso, sequei-o e voltei a vestir o casaco.
Por muito ridícula que pareça esta ação, e eu sei o que parece a quem a vê de fora, soube-me bem. Percebi que não sou insensível, que consigo sentir dor, que consigo chorar, senti-me normal, há 1825 dias que não me sentia normal...
Já jantei, aqueci uma pizza, não me apeteceu cozinhar.
O Paulo não está, foi com uns amigos ao cinema, convidou-me, mas recusei. Fico feliz por ele estar a conseguir passar à frente, orientar a vida dele, arranjou trabalho, amigos e namorada! Sei que o pai ia estar orgulhoso dele. Eu, por outro lado não. Não consigo apagar as imagens daquele dia horroroso, do sangue que os cobria, não é o facto de conseguir lembrar-me é o facto de não conseguir esquecer-me...
Quanto ao meu dia de escola, foi o mesmo de sempre sentei-me na última carteira o professor de filosofia chamou-me para a primeira, e eu sem resmungar fui. Tomei nota de tudo e emprestei o caderno ao Jacinto para ele fotocopiar e passar para o resto da turma todos os resumos. Sei que ele me usa, que só me dirige a palavra para ficar com o meu caderno, mas para quê aborrecer-me agora?
Almocei na cantina na mesa em frente à janela, no canto esquerdo, sozinha, mais uma vez... A comida era ervilhas com ovos, lembro-me de quando uma sombra franzina os fazia na nossa cozinha; o cheiro de imediato invadia a casa, chegava ao meu quarto e saliva nascia na minha boca. Vinte minutos depois uma voz fina e estridente chamava e todos desciam para o jantar. A sala enchia-se de barulho do Timmy e do Tom, eu ficava ao lado da minha mãe à mesa. E o Paulo era sempre "o meu filho mais molengão", só quando ele chegava é que se podia começar a comer, por vezes a comida gelava e o pai ia lá acima chamá-lo.
Ligava-se a televisão e "ouviam-se as noticias" como o meu pai diria.
Há 1825 dias que não ligo a televisão, nem janto no meu lugar habitual nem comia ervilhas com ovos até hoje, não me souberam ao mesmo, nada sabe ao mesmo...
A sala barulhenta agora é silenciosa, o piano que o Tom tocava não é remexido e a luz nunca mais cá entrou. Não quero que ela entre, porque eles eram a luz da nossa casa, agora existe apenas sombra, escuridão, solidão... Não há luz, mãe, e por isso não consigo ver nada, não consigo ver o caminho de volta para mim, a vida não passa disso agora - escuridão.
Perdi a minha essência, o Paulo diz que recuperá-la só depende de mim, talvez esteja certo, mas eu não consigo arranjar um grupo de amigos e fingir que nada aconteceu...
Em vez disso carrego-te comigo na mochila e aponto tópicos que me ajudam mais tarde a lembrar-me do meu dia, para te contar.
Amanhã vou ao cemitério vê-los, ainda não fui lá esta semana, tenho de ir, o Paulo diz que isso me faz mal, e por isso não vai lá. Eu vou. Gosto de lá ir, vê-los e ler-te para eles em voz alta, para que eles saibam o que aconteceu na minha semana, nem sempre lhes leio tudo, não quero que saibam a desgraça em que caí, por isso leio apenas as partes em que consigo simular alguma alegria, ou menos tristeza... Eu sei que eles sabem o que acontece, mas não quero ser eu a dizer-lhes, não quero dizer-lhes.
Amanhã vou também à casa da Júlia, vamos estudar História na biblioteca municipal, calha mesmo bem. Lá ao lado está a banca a que costumo ir comprar tabaco, talvez passe lá... Sei o que pensas, eu também sei que é errado, mas é a única abstração que tenho a esta mísera e mesquinha tristeza.
Voltando à Júlia, ela conhece-me desde pequenas como sabes, ela acompanhou todo o meu luto e perda, foi comigo ao funeral dos meus pais e irmãos. Quando voltei as aulas tudo e todos me perguntou "Como é que estás?" ou "Estás melhor?"; "Se precisares de mim já sabes" a verdade é que nenhum deles queria realmente saber, na verdade metade deles nunca esteve realmente lá, muitos seguiram caminho sem esperar pela minha resposta...
Mas não a Júlia, ela esteve cá, dormiu cá em casa várias vezes para me ajudar a adormecer, de qualquer das formas, nunca mais foi o mesmo, nunca mais fomos as mesma, e sei que a culpa é minha.
Não estou preparada para voltar a ser feliz, para voltar a sorrir e a viver...
Talvez um dia, daqui a 1825 dias isto passe, ou talvez carregue para sempre comigo esta perda, não é pesada, é leve! É a falta de enchimento dentro de mim, estou vazia, tenho um buraco no coração, e faço eu o que fizer ele não enche. Acho que não é suposto encher, eles não voltam, ele não enche. Mas com o tempo, o meu coração há de se moldar e eu também, espero.
Até que isso aconteça continuarei a escrever neste nosso cantinho secreto,
Que amanhã seja um dia melhor,
Lena
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Abandonada
Teen FictionHá exatamente 1825 dias uma tragédia na grande mansão da rua Sparks leva de Helena não só os seus pais mas também dois dos seus irmãos. Helena, sozinha com o seu irmão mais velho, Paulo, tenta sobreviver, estando isto a ser mais difícil do que pensa...