1825

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Nova York, 11-06-2015

Querido Diário,

Hoje cometi um erro horrível, cortei-me, pulso direito, conseguia sentir a minha artéria pulsar e depois do meu dia pensei que poderia fazer essa experiência, ver até quanto é que conseguia suportar a dor. Por isso desmanchei uma das lâminas de barbear do Paulo. Riscos vermelhos toscos cobriram o papel branco fazendo uma obra abstrata que remontava a Picasso. Doeu-me, lágrimas quentes e salgadas escorreram-me pela cara, mas não parei e continuei a pincelar, parei depois de 20 minutos. Lavei o pulso, sequei-o e voltei a vestir o casaco.

Por muito ridícula que pareça esta ação, e eu sei o que parece a quem a vê de fora, soube-me bem. Percebi que não sou insensível, que consigo sentir dor, que consigo chorar, senti-me normal, há 1825 dias que não me sentia normal...

Já jantei, aqueci uma pizza, não me apeteceu cozinhar.

O Paulo não está, foi com uns amigos ao cinema, convidou-me, mas recusei. Fico feliz por ele estar a conseguir passar à frente, orientar a vida dele, arranjou trabalho, amigos e namorada! Sei que o pai ia estar orgulhoso dele. Eu, por outro lado não. Não consigo apagar as imagens daquele dia horroroso, do sangue que os cobria, não é o facto de conseguir lembrar-me é o facto de não conseguir esquecer-me...

Quanto ao meu dia de escola, foi o mesmo de sempre sentei-me na última carteira o professor de filosofia chamou-me para a primeira, e eu sem resmungar fui. Tomei nota de tudo e emprestei o caderno ao Jacinto para ele fotocopiar e passar para o resto da turma todos os resumos. Sei que ele me usa, que só me dirige a palavra para ficar com o meu caderno, mas para quê aborrecer-me agora?

Almocei na cantina na mesa em frente à janela, no canto esquerdo, sozinha, mais uma vez... A comida era ervilhas com ovos, lembro-me de quando uma sombra franzina os fazia na nossa cozinha; o cheiro de imediato invadia a casa, chegava ao meu quarto e saliva nascia na minha boca. Vinte minutos depois uma voz fina e estridente chamava e todos desciam para o jantar. A sala enchia-se de barulho do Timmy e do Tom, eu ficava ao lado da minha mãe à mesa. E o Paulo era sempre "o meu filho mais molengão", só quando ele chegava é que se podia começar a comer, por vezes a comida gelava e o pai ia lá acima chamá-lo.

Ligava-se a televisão e "ouviam-se as noticias" como o meu pai diria.

Há 1825 dias que não ligo a televisão, nem janto no meu lugar habitual nem comia ervilhas com ovos até hoje, não me souberam ao mesmo, nada sabe ao mesmo...

A sala barulhenta agora é silenciosa, o piano que o Tom tocava não é remexido e a luz nunca mais cá entrou. Não quero que ela entre, porque eles eram a luz da nossa casa, agora existe apenas sombra, escuridão, solidão... Não há luz, mãe, e por isso não consigo ver nada, não consigo ver o caminho de volta para mim, a vida não passa disso agora - escuridão.

Perdi a minha essência, o Paulo diz que recuperá-la só depende de mim, talvez esteja certo, mas eu não consigo arranjar um grupo de amigos e fingir que nada aconteceu...

Em vez disso carrego-te comigo na mochila e aponto tópicos que me ajudam mais tarde a lembrar-me do meu dia, para te contar.

Amanhã vou ao cemitério vê-los, ainda não fui lá esta semana, tenho de ir, o Paulo diz que isso me faz mal, e por isso não vai lá. Eu vou. Gosto de lá ir, vê-los e ler-te para eles em voz alta, para que eles saibam o que aconteceu na minha semana, nem sempre lhes leio tudo, não quero que saibam a desgraça em que caí, por isso leio apenas as partes em que consigo simular alguma alegria, ou menos tristeza... Eu sei que eles sabem o que acontece, mas não quero ser eu a dizer-lhes, não quero dizer-lhes.

Amanhã vou também à casa da Júlia, vamos estudar História na biblioteca municipal, calha mesmo bem. Lá ao lado está a banca a que costumo ir comprar tabaco, talvez passe lá... Sei o que pensas, eu também sei que é errado, mas é a única abstração que tenho a esta mísera e mesquinha tristeza.

Voltando à Júlia, ela conhece-me desde pequenas como sabes, ela acompanhou todo o meu luto e perda, foi comigo ao funeral dos meus pais e irmãos. Quando voltei as aulas tudo e todos me perguntou "Como é que estás?" ou "Estás melhor?"; "Se precisares de mim já sabes" a verdade é que nenhum deles queria realmente saber, na verdade metade deles nunca esteve realmente lá, muitos seguiram caminho sem esperar pela minha resposta...

Mas não a Júlia, ela esteve cá, dormiu cá em casa várias vezes para me ajudar a adormecer, de qualquer das formas, nunca mais foi o mesmo, nunca mais fomos as mesma, e sei que a culpa é minha.

Não estou preparada para voltar a ser feliz, para voltar a sorrir e a viver...

Talvez um dia, daqui a 1825 dias isto passe, ou talvez carregue para sempre comigo esta perda, não é pesada, é leve! É a falta de enchimento dentro de mim, estou vazia, tenho um buraco no coração, e faço eu o que fizer ele não enche. Acho que não é suposto encher, eles não voltam, ele não enche. Mas com o tempo, o meu coração há de se moldar e eu também, espero.


Até que isso aconteça continuarei a escrever neste nosso cantinho secreto,

Que amanhã seja um dia melhor,


Lena


AbandonadaOnde histórias criam vida. Descubra agora