O memorioso

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Uma releitura de Jorge Luis Borges.

Sérgio Carreira vivia enclausurado em seu quarto, onde encontrava uma sensação de paz e segurança que lhe faltava ao sair às ruas e realizar tarefas comuns do dia a dia. Ele nunca tinha ouvido nem falado, o que o separava da comunicação verbal com outras pessoas. No entanto, essa particularidade escondia uma característica única: sua visão. Sérgio não percebia o mundo em movimento, mas sim como fotografias estáticas.

Deixe-me explicar mais sobre a visão de Sérgio Carreira. Ele registrava cada intervalo de tempo como uma foto em sua mente e, como um meticuloso arquivista, catalogava cada imagem. Sua memória não consistia em trechos, mas em álbuns. Por exemplo, quando descia uma escada em um percurso de 20 segundos, sua mente continha uma coleção de fotos, organizadas conforme o que ele considerava lógico para a progressão.

O gato que ele avistava de manhã não era o mesmo que via à tarde, apesar de ser o mesmo animal. Suas imagens capturavam nuances diferentes, como a desordem do pelo. As sensações associadas a uma imagem não se assemelhavam às de outra imagem.

As pessoas também se mostravam distintas em cada imagem, variando em postura, roupa e posições. Envelheciam a cada nova imagem: o indivíduo das 9h diferia daquele das 10h23. Alguns comportamentos observados às 15h podiam se assemelhar aos das 22h, enquanto ações realizadas às 17h em uma sexta-feira de verão jamais se repetiriam. Às vezes, ele contemplava sua janela, buscando reencontrar uma imagem que vira anteriormente, mas ainda que fosse muito parecida, cada imagem era única em diversos aspectos.

Tive o prazer de conhecer Sérgio durante uma das minhas visitas à cidade grande, enquanto pesquisava sobre a mente humana. Uma padaria me informou sobre um filho de uma lavadeira que tinha um talento peculiar: desenhava paisagens, momentos precisos e cenas da sua janela com incrível precisão. Ao entrar na casa, a mãe me tratou com cordialidade devido ao meu título de doutor. Ao entrar no quarto do menino, lembro-me de seus olhos bem abertos em minha direção, seguidos por segundos de completa indiferença, como se já tivesse obtido tudo de mim. Tentei conversar e gesticular, mas só depois de algum tempo conseguimos estabelecer uma comunicação por meio de desenhos em papéis espalhados pelo chão.

Após visitar sua casa várias vezes, estabelecemos uma conexão. Embora os desenhos que ele me entregasse fossem semelhantes, nunca eram iguais, sempre havia algo novo. Com permissão de sua mãe, levei-o para passear de carro pela cidade e forneci mais papel e lápis. Em uma dessas saídas, Sérgio testemunhou um acidente de carro, com uma vítima no chão, destroços e marcas de pneus. Naquele dia, ouvi um único grunhido vindo de Sérgio, seus olhos se fecharam e ele não os abriu até chegarmos em casa. Ele desenhou com riqueza de detalhes o acidente.

Levei os desenhos à polícia no dia seguinte, onde identificaram o motorista responsável pelo acidente e o levaram a confessar. Ele foi condenado em uma semana. Decidi não contar a Sérgio sobre o desfecho, pois não havia meios concretos para isso, mas o dinheiro da recompensa trouxe ajuda para sua mãe e irmãos.

Depois, voltei ao campo e permaneci lá por alguns meses, afastado dos estudos e da agitação da cidade. Ao retornar, uma das primeiras casas que visitei foi a de Sérgio, apenas para descobrir que seus irmãos lhe haviam mostrado que, ao solucionar um crime, ele se tornara um herói. Descobri também que Sérgio Carreira havia falecido há 15 dias devido a um AVC. Seu último desenho retratava uma das nossas saídas de carro, não do dia do acidente, mas de uma tarde bonita e florida. O desenho focava em mim dirigindo o carro, com a mão de Sérgio segurando um sorvete e a palavra "obrigado" escrita de forma pré-alfabética.

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