Através da janela

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Há certas coisas na vida, ou situações, que não podemos evitar que aconteçam. Nos esforçamos ao máximo, perdermos horas de sono, cometemos as maiores loucuras, gastamos os maiores valores, tudo em prol do bem maior: protegermos a nós mesmos. Protegermos o nosso legado, aquilo que construímos por anos com tanto esforço e dedicação. Mas nem todas as tentativas, nem todos os planos mais bem arquitetados, podem ir contra o que o destino nos tem reservado. E Irene La Selva aprendeu isso da pior maneira possível. A cena que via em sua frente, não era tão difícil de ser entendida: seu marido, sua maior conquista, aquele que dedicou anos de sua vida sendo a melhor e mais dedicada esposa, estava agora se entregando aos braços de outra. E não uma outra qualquer como a amante mais nova que, para ela, já não tinha tanta importância. Agora a situação era muito pior, mudava o grau de importância, o nível de risco, o nome e os sentimentos daquele triângulo amoroso que ela havia se enfiado. E por mais que soubesse, que já fosse possível prever que Antônio cederia ao amor do passado, recém renascido, não imaginaria que ver e presenciar tal cena lhe causaria tanto ódio.

Tudo se deu inicio por uma ligação que ela não atendeu. Quando o sol foi embora deixando a lua decorar o céu, lá estava ela, em seu quarto, focada em tornar a noite de Antônio, inesquecível. Queria deixar o cheiro dos dois gravado naqueles lençóis. Melhorar o humor do marido e mostrar para ele que viver sem ela, sem o amor de ambos, sem a cumplicidade de anos, sem seus corpos fundidos, era impossível. O vestido - que raramente usava - fora escolhido a dedo, num tom de vermelho bordô, um colar extenso adornando a entrada de seu decote. Penteava o cabelo com cuidado, o sorriso refletido no espelho de quem sabia o que queria e que tinha certeza que conseguiria. E novamente o celular tocou - desta vez várias mensagens - chamando a atenção da matriarca. Ao ligar o visor do aparelho, espantou-se com tantas mensagens de uma única pessoa. Fora impossível não revirar os olhos. Nice não tinha noção ? Etiqueta ? Quem, com o mínimo de educação, liga tantas vezes ou manda tantas mensagens desesperadoras daquela forma ? Mesmo que ainda estivesse com suas ressalvas para com a antiga amiga - depois das ameaças trocadas entre as duas - a curiosidade falou mais alto. Uma foto, fora apenas o necessário, para que seu corpo saísse de órbita. Ainda que sua visão fosse perfeita, o zoom dado na imagem que havia recebido da aliada deixou claro o que já era óbvio: Antônio e Agatha, sua maior e declaradamente inimiga, rival, estavam juntos em um restaurante da cidade. Lado à lado, a foto capturada refletiu perfeitamente os olhos marejados de ambos os amantes, o toque íntimo das mãos unidas, o ambiente romantizado em baixa luz. Em outra imagem, completava o que via: os rostos deles unidos, refletidos através da janela do restaurante no qual Nice, coincidentemente, passava em frente quando avistou o casal. Não restava dúvidas, estava tudo ali, estampado, escrachado, esfregado em sua cara que estava perdendo aquela batalha.

Contudo, uma tela de celular para ela não era o suficiente.

Como traço de sua personalidade quando estava em situações de extremo nervosismo, ela correu. Já estava pronta. Apanhou a chave do carro, a bolsa e o celular, passando por Petra e Angelina como um furacão sem ao menos olhá-las nos olhos. O que lhe guiava era a raiva, a dificuldade de aceitar aquilo que era óbvio. Dirigiu rapidamente, não saberia dizer qual caminho tomou ou da onde tirou tamanha frieza para, ainda que parada na esquina do estabelecimento, conseguisse se manter séria ao observar, agora à olho nu, o amor e a vulnerabilidade de seu marido sendo entregue a outra mulher. A lágrima grossa e pesada escorreu apenas de um olho seu; era o máximo que conseguia entregar para ele naquele momento. As mãos envolta ao volante, os olhos semicerrados, a respiração descompassada sendo notada pelo movimento rápido de seu colo. Ela observava cada movimento dos dois, cada sorriso trocado entre seu marido e sua inimiga, sem ser preciso ouvir o que estavam falando pois os gestos refletidos em ambos os corpos não lhe restava dúvidas.

Mas... E ela ?

E o matrimônio ? A família ? Ele não se lembrava disso ?

Estava mais do que claro que Antônio havia mandado às favas todos os ditos convencionais que pregava sobre uma família perfeita e de respeito. Não se importou se alguém fosse vê-lo ali, num restaurante da cidade com sua ex, falecida, esposa. Irene sentia-se bem mais do que traída. Estava exposta e sujeita a virar, mais uma vez, falatório na boca do povo daquela cidade. E ele não se importava. Não via os reais interesses de Agatha. Não se importava com o mal que estaria causando a família. Não lembrava do casamento com ela que, provavelmente, seria anulado. Tantas humilhações, brigas, esforços para que tudo saísse da forma que ele queria. E apesar de suas próprias ambições, seus interesses pessoais em jamais voltar a viver na sarjeta, não fora daquela forma que Irene um dia imaginou perder tudo o que tinha. Muito mais do que ser traída, ela sentia raiva do risco que corria em não ser mais uma La Selva.

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⏰ Última atualização: Aug 30, 2023 ⏰

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