Não sei exatamente como tudo isso se iniciou. Apenas mais um jovem cometeu um delito e foi levado a um tribunal. "Quando se tem dinheiro, as coisas ruins caminham devagar e as boas voam." Era o que minha mãe me dizia quase todos os dias que eu ousasse reclamar de alguma coisa. Ela nunca foi de me repreender, mas também nunca fui de querer dar motivos para provocar uma discussão.
Foi mais um dia de merda que seguiu há meses atrás. Eu tive paciência para roubar um celular e então consegui. Talvez tenha sido a primeira vez que a polícia de fato me prendeu. Eu teria sido levado de uma vez para a cadeia, mas não foi o que aconteceu. As coisas correram tão embaralhadas que, depois de três meses, me disseram por carta que eu seria levado até Brasília. Esta é minha sina, minha história.
Anos atrás, ser julgado pelo supremo era coisa pra gente rica que tinha dinheiro para advogados. Atualmente, é coisa pra quem sabe manter a calma perante um juiz de primeira instância e falar o que eles querem ouvir para te deixar em paz, ou talvez não tão em paz assim. Eu vejo nos olhos de cada um nos tribunais que frequentei que não sou um rapaz que eles vão com a cara, mas também entendo que sou necessário para que eles possam ganhar seus rios de dinheiro.
Eu estava em Brasília, em uma fila separada pela cor de pele. Pessoas negras e pessoas brancas. Muitos de fora do país poderiam usar o termo "pardo", mas aqui se tornou crime chamar alguém de pardo há dois anos atrás. O motivo? Não me pergunte. São termos muito técnicos que os jornalistas usam para explicar essa merda e qualquer outra decisão que o governo tenha. Eu sei meu lugar na sociedade e sei que não tem nada a ver com o que falam na televisão, então se foda toda essa merda. Sou um pobre favelado que mora no nordeste do país. Se eu fosse o que eles dizem ser, eu não teria viajado na classe econômica do avião.
A tribuna trocava pacientemente os condenados. Todos os semi-condenados que subiam para depor e serem julgados tinham direito a um advogado. Para minha enorme "surpresa", era o mesmo cara para todos.
A fila andava e eu observava a cara daquele maluco que fingia que estava do nosso lado, defendendo todos os pontos que citávamos, tentando explicar um delito, um furto, um roubo, um homicídio, um latrocínio... Como você explica essa merda para um velho branquelo enrolado numa toga como se fosse uma mortadela apodrecida numa geladeira velha? Aquele lugar me causava nojo, mesmo que o cheiro fosse de flores de um campo florido de um litoral.
Respira, Mathias... Estamos apenas esperando nossa vez de sermos mandados ao presídio. A fila dos brancos andavam até que mais rápido que a minha fila, ou seja, a dos negros. Por mais que soasse incômodo, ninguém parecia ter coragem de perguntar para o juiz porque diabos estamos separados por etnia.
O advogado gesticulava com um sorriso no rosto e volta e meia ele conseguia fazer alguém responder em liberdade, ou ter que pagar a pena em uma cesta básica, ou até mesmo ser inocentado completamente. Os argumentos variavam, mas as coisas pareciam mudar quando um rapaz subiu na tribuna.
Era um homem branco com poucos pelos no rosto. Sua aparência não soava como alguém muito jovem, apesar de marcas na pele causadas por vícios como cigarro e álcool. Aquelas cavidades nas bochechas pouco cobertas pela barba falha e os lábios escurecidos entregavam de cara o que ele tinha feito para estar de frente para um juiz como réu. Não é como se todo viciado fosse ser julgado por alguma coisa, mas duvido que não esteja lá por conta de alguma ocorrência causada por vícios.
O juiz olhou rapidamente para ele e então tirou seus óculos do rosto lentamente. Ele coçava os olhos com a falange do polegar e dedo indicador. Aquela pele caída do pescoço do juiz não conseguia disfarçar toda vez que ele engolia seco só de ler os papéis da ocorrência. Ele parecia já dar o veredito antes mesmo de pedir para o réu falar seu nome. Coisa bem esquisita por sinal, porque ele não perguntou o nome daquele branquelo, diferente dos demais que assisti. A questão apresentada foi outra.
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Incorretamente vívido
RomanceUm jovem brasileiro que nasceu nordeste do país é levado até o supremo tribunal federal para ser julgado por um de seus delitos. Por nunca sair da zona periférica ou ter contato com pessoas de fora de sua região, Mathias começa a entender como seu p...