Único.

595 70 17
                                    

– Que palavra é essa, Rams? – Kelvin apontava para a frase. Ele havia acabado de ler o poema "E isto é o amor?" De Gregório de Matos, juntamente com Ramiro, enquanto os dois encontravam-se nas danças das palavras do autor, que por meio de uma junção de letras miúdas, de uma imensidão de belas palavras e versos bem escritos fazia o peão sentir inúmeros sentimentos de uma vez só, esses que nem ele conseguia distinguir ou compreender perfeitamente.

Os meses de aulas com o Santana fizeram com que o peão conseguisse ler e escrever bem a maioria das palavras. Ele tinha aulas quase todas as noites, sendo estas em sua maior parte no local externo do bar, sentados sob a árvore que havia na frente do local, deixando guiarem-se pelas mais diversas histórias possíveis.

Em alguns momentos a literatura infantil invadia a mente de Ramiro, enquanto Kelvin explicava sobre castelos, príncipes, monstros, fadas, duendes e dragões... Junto com Kelvin, ele sentia que poderia sonhar como criança, imaginando e fantasiando aquelas histórias em mente, dando asas a sua própria imaginação... Não se importava mais com qual gênero o outro escolhia para ser lido, ele gostava tanto de vê-lo ler e o ensinar que qualquer história que fosse, ele iria adorar ouvir.

O Santana fazia o peão querer escutar as mais belas histórias, escrever os mais bonitos poemas, falar igual o mais novo falava, mesmo que fosse quase impossível para si... Porém Kelvin sempre esperançava Ramiro, mostrando todos os avanços que ele já tivera e que ainda teria...

Mas se o capataz já conseguia fazer, ler ou escrever alguma coisa, era graças ao outro, que estava ali todas as noites, pacientemente, esperando o seu aluno decifrar e mergulhar nas mais diferentes palavras, nas mais diferentes histórias, nos mais diferentes encantos e amores...

Ramiro tinha olhos brilhantes para cada vez que Kelvin lia algo. A esperteza bonita do outro o fazia querer ler também, o fazia querer escrever ainda mais. A maneira sábia como o outro homem conseguia ler tudo com tanta facilidade fazia Ramiro surpreender-se. Como era esperto! Kelvin era a pessoa mais esperta que já conhecera. O Santana tinha um dom e impressionava cada vez mais o Neves. Kelvin era dono de uma sabedoria que encantava e deliciava Ramiro. E ele tinha tanto orgulho daquele homem. Tinha tanto orgulho de tudo que Kelvin conseguia fazer...

Se bem que Ramiro duvidava que houvesse algo que seu Kevín não soubesse fazer. Ele fazia tudo da melhor forma possível.

– Qual palavra é, Kevín? – Ramiro olhou rapidamente para o livro, a fim de buscar encontrar a palavra que o outro queria que ele dissesse.

– Essa, a segunda dessa primeira linhazinha, perto deste é aqui... – O ex-garçom observou o outro homem, vendo os olhos do Neves se estreitaram ainda mais. A mente de Ramiro parecia ter parado de processar informações, ele não reconhecia aquela palavra.

– A-am... – A sua garganta procurava um mínimo vestígio de voz que fosse, essa voz que não saia, mesmo com o esforço para poder ler...

Sentindo seus esforços serem em vão e sua cabeça começar a doer um pouco, Ramiro grunhiu em frustração. Droga! Kelvin estava tirando tanto tempo para lhe ensinar e nem para ser um aluno bom ele servia...

– Kevín, sô um jumento, num sei ler essas coisas... Num tô conseguindo... – Bateu levemente a mão fechada sob sua cabeça, enquanto Kelvin tocavalevemente em seu braço, repreendendo-o.

– Não, você não é. Você está aprendendo, Ramiro. E você vai aprender junto comigo essa palavra aqui. Eu vou te ensinar, você quer aprendê-la? – O outro acenou positivamente, sentindo o toque do Santana fazer sua pele arrepiar-se. Ele olhou para o enumerado de palavras ali novamente, chegando mais próximo de Kelvin.

– Eu quero, Kevín. Ocê me ensina? Eu quero tudo contigo... – Confessou, chegando um pouco mais próximo, enquanto sentia a sua respiração pesar um pouco mais e o rosto de Kelvin ficar ainda mais perto.

Ele queria aprender. Ele queria sentir. Ele queria viver. Ramiro queria se permitir construir uma nova história... Mesmo depois de tudo, ele poderia ter direito a reconstruir sua história? Começar uma nova vida? Buscar realmente melhoria? Ele só queria viver.

Ele só queria sair das algemas que o prendiam no passado tenebroso que o assombrava por tanto tempo, que todas as madrugadas, no seu quarto, vinha lhe visitar, como punição por seus maiores erros...

Ele só queria ser alguém... Sentir que era alguém. E pela primeira vez aquilo acontecia, porque Kelvin o fazia sentir-se diferente. Porque com Kelvin, ele sentia que não teriam julgamentos, que não teriam olhares de medo, que não seria visto como um monstro e que não seria visto como um nada...

Porque sempre que estava com Kelvin ele tinha aquilo que sempre sonhou; Uma verdadeira vida. Uma vida bonita.

Kelvin era a parte mais bonita da sua vida. Kelvin coloriu e reescreveu a história de Ramiro. E Ramiro queria escrever um novo capítulo com ele, sem medos, preocupações ou tormentos, somente como os poemas bonitos que ele lia e contava para si. Ramiro queria viver o poema mais bonito. Queria viver o poema mais bonito com Kelvin.

– KELVIN! PRECISAMOS DE AJUDA! ZEZA E LUANA ESTÃO DISCUTINDO! – O grito de Berenice foi ouvida da entrada do bar, enquanto os dois precisaram afastar-se rapidamente.

– Eu já volto, tá? Vamos ler essa palavra daqui a pouco... – Sorriu, deixando o caderno, o livro e uma caneta sobre o colo do outro. Ramiro concordou, observando mais uma vez a página marcada ao qual haviam parado, sentindo ainda as emoções das palavras do poema que estava ali e que foi lido por Kelvin a alguns minutos atrás...

Como que poemas podiam mexer tanto com a mente de Ramiro assim? As escritas daquele autor que dizia que o amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias, uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas, quem diz outra coisa é besta mexiam tanto com o peão que ele sentia-se tonto toda vez que relembrava Kelvin lendo-o para si.

Queria poder escrever e ler a palavra que Kelvin havia lhe mostrado, porém, por mais que se esforçasse, aquilo era difícil de entender... Essa palavra parecia um tormento, aquelas letras o perseguiam... Mas se Kelvin a olhava com tanto carinho, ela era algo especial, então, ele desejou poder lê-la, porque isso fazia o outro homem feliz. E se fazia Kelvin feliz, ele ficaria alegre também.

Desejou, por um momento escrever sobre o que sentia também. Queria poder escrever coisas bonitas como as que lia.

– Mas como eu vou iscrevé coisa bonita? Se eu não sei nem falar as belezuras que esse homi diz? – Parou por um momento, suspirando. Mas ele tinha vontade. Sentia necessidade. Queria pegar um pedaço de papel, sentir a caneta escrever sobre si. – Eu num sô interresante, mas minha vontade de iscrever é tão grande...

Olhou novamente para a palavra que não conseguia decifrar, tentando realmente encontrar o som em sua garganta para pronunciá-la. Era uma missão quase impossível.

– Am... Am... – Pegou o pequeno caderninho que estava ali, enquanto a caneta em sua mão preenchia o vazia de uma das folhas. Aquilo precisava ser escrito.

"Há uma palavra que meus olho não conhecem, que me esforço, mas que é difícil di intender. Meu coração já não percebi e eu a tiro do caminho, pur isso ela eu não posso ler." Em meio a alguns rabiscos, alguns erros ortográficos, algumas pequenas letras a mais ou a menos, ele tentou colocar tudo o que sentia para fora, em uma confissão para si mesmo.

"Essa palavra me some, parece até um tormento. Enquanto penso se um dia ela eu vô puder ler, as suas letras me persege, causando em mim incertesa." A letra que já havia melhorado bastante comparada há meses atrás, preenchiam o vazio daquela folha, enquanto Ramiro concentrava-se em ouvir dentro de si tudo aquilo que queria pôr ali. Parou por um instante, vendo Kelvin caminhando em sua direção, mas ainda um pouco distante. Tentou continuar a escrever...

Ao olhar pelo canto do olho o livro que estava perto a si, ele percebeu as letras juntarem-se entre si. Ramiro conseguiu, pela primeira vez, compreender aquela palavra.

Ele havia conseguido decifrá-la.

"Mas como eu sem ter direito o ensino, consigo lê-la quando vejo essa belezura? Entre tanta coisa crescendo aqui dentru de mim, uma coisa floriu ainda mais quando o vi. E as letras se ajuntaram, dançando de frente a mim, enquanto eu percebi a palavra amor, logo ao lado do meu..."

– Kevín – Sorriu, vendo que o outro homem aproximava-se sentando e fechou o caderninho. Deu um pequeno sorriso – Kevín, eu acho que discubri a palavra...

Palavra - KELMIROOnde histórias criam vida. Descubra agora