"Enxerguei, por instante, uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor." – Guimarães Rosa.
A pequena foto colada na parede do quartinho revelava Antônio ao lado do homem que agora observava o pequeno retrato, enquanto ele sentava-se na cama.
"Você nunca fez nada direito mesmo, né? Para falar a verdade eu nem sei porque ainda não tinha te mando embora... Você nunca me ajudou da maneira que eu realmente precisei, Ramiro! Lembra quando chegou aqui com treze anos? Desde essa época eu só venho tendo mais e mais dores de cabeças... Eu pensei que fosse ser útil te ter aqui, rapaz, mas a sua incompetência e burrice me mostraram que isso nunca vai mudar! Parece que quando mais tento, mais você faz de tudo para me ver na lama! Sente prazer nisso, rapaz? Em me ver falindo? Eu cansei disso Ramiro... Arruma suas coisas, organiza o quartinho... Mas daqui uns meses esvazia ele, tá? Que eu já arrumei alguém para te substituir..." Sentindo algumas lágrimas rolarem sob seu rosto, Ramiro permitiu-se chorar sozinho ali, enquanto as palavras ditas pelo La Selva, que rondavam sua cabeça há horas, não o deixava e não o permitia ficar em paz.
– Eu num queria te decepcioná, patrão... – Pegou a pequena foto nas mãos – Disculpa por num ser o que o sinhó precisa... Espero que ache alguém miór que eu...
Estava visivelmente decepcionado consigo mesmo, xingando-se mentalmente de jumento enquanto pensava no quanto era difícil ver o rosto enraivado do patrão. Queria tanto poder ter dado orgulho ao outro homem, vê-lo feliz...
Como iria conseguir dinheiro para poder ajudar sua mãezinha, agora?
Levantou-se, percebendo o pequeno espelho do outro lado do quarto, enquanto olhava para o reflexo.
Aquele reflexo o assustava. Sua própria imagem assustava-o, o aterrorizava e o atormentava, enquanto apenas sentia um sentimento desagradável preencher cada vez mais o vazio que sentia. Seu corpo tremia, sua visão estava turva e a pequena fotografia ainda estava consigo.
Ele não conseguia ver mais nada ali no espelho além de um incompetente, de um jumento, de um monstro... Aquele espelho se preenchia totalmente com sua forma, mas para falar a verdade, Ramiro não via nada ali... Apenas o vazio...
Sua cabeça estava doendo, enquanto sentia vontade de gritar, mas sua voz não saia de maneira alguma.
Aquele reflexo que o imitava estava incomodando-o por demais. Incomodava demais ser ele. Era torturante, angustiante e adoecedor ser Ramiro Neves...
Aquilo tudo estava sufocando-o e conseguir controlar sua respiração ficava cada vez mais difícil.
As lembranças dos trabalhos que Antônio o mandava fazer visitavam-o diariamente e naquele momento, elas estavam mais vivas na mente do capataz que nunca. As vozes pedindo por um socorro, os gritos implorando por misericórdia e as lágrimas espalhadas pelos rostos daquelas pessoas não saiam da cabeça do homem nem por um segundo sequer.
Algumas lágrimas molhavam seu rosto, enquanto a foto era rasgada ao meio. Naquele momento ele percebeu que seu vínculo com o La Selva havia sido desfeito e permitiu-se que seu choro ecoasse ainda mais sobre aquele pequeno lugar.
Quase vinte anos foram jogados fora como se não fossem nada. Uma vida inteira tentando agradar alguém... Uma vida inteira fazendo tudo o possível para poder ver alguém feliz...
Pena que agora não fazia diferença o tanto de esforço que havia feito, todas as vidas que destruira, todas as noites mal dormidas, todos os pesadelos, tapas e broncas...
Não fazia diferença. Não fazia diferente para o La Selva... Nunca fizeram. Talvez apenas Ramiro sentisse algum afeto. Antônio não...
Ele não se importaria. Na cabeça do peão ele se importava com o outro, mas na vida real, para Antônio não fazia a menor diferença se o outro estava bem ou mal, sofrendo ou sorrindo, vivo ou morto...
Aquele ao qual muita das vezes em seus pensamentos ele havia chamado de pai, havia acabado de despedi-lo, como se não importasse com todos os anos que trabalharam juntos. Aquele ao qual ele sempre viu como um pai, acabou o destruindo cruelmente com palavras, o destruindo cruelmente com seu olhar...
Ele não se importava que as mãos do capataz estivessem sujas de sangue por conta dele. Ele não se importaria, ele não fazia questão. Ramiro era um objeto para ele. Era uma peça no tabuleiro que ele controlava. Era apenas um pequeno auxílio que fazia suas vontades...
Antônio não sentia a dor do peão, porque para o fazendeiro o peão agora era apenas um nada... Um simples nada.
– Por quê você é assim? Eu odeio você... – Um pequeno soluço saiu da boca de Ramiro, enquanto a imagem no espelho continuava ali – Eu odeio ser você, odeio!
O barulho do vidro ecoava sob o quarto, enquanto Ramiro observava a mão direita agora manchada de sangue. Cacos de vidro estavam espalhados no chão do pequeno cômodo. Assim como o espelho, todo o seu eu também estava quebrado.
– Some... Some... Vai embora daqui... – Pedia, enquanto fechava os olhos. Encolheu-se enquanto seus braços abraçam seus joelhos, sequer importando com o feio machucado que havia feito em sua mão – Suma daqui... Suma...
Alguns minutos passaram quando um pequeno barulho na porta pôde ser ouvido, embora Ramiro não tivesse saído do canto. Aquele homem parecia tão pequeno encolhido próximo a parede, ele só precisava esquecer-se quem era por um segundo, esquecer do monstro, do fardo e da dor que carregava consigo vinte e quatro horas por dia.
– Rams? Ramiro? – A porta do quarto foi aberta, enquanto um empolgado Kelvin aparecia segurando um pequeno livro e um caderno em suas mãos. Porém, sua fisionomia alegre e saltitante logo foi desfeita assim que observou o poço de sangue no quarto, o espelho totalmente quadrado e um homem recuado no canto, chorando encolhido. – RAMIRO? O QUE ESTÁ ACONTECENDO? RAMIRO?
Ramiro não conseguia se expressar como queria, não conseguia parar de chorar e sequer olhar para Kelvin. Ele estava sentindo-se sufocado e todo seu corpo doía...
– Ele tem que sumir... – Olhou fixamente para um dos cacos de vidro ainda próximo a si, que revelava seu rosto. Tampou o rosto rapidamente com as mãos, não querendo olhar mais para seu reflexo. As lágrimas escorriam sob seu rosto e agora também molhavam sua roupa, enquanto Kelvin aproximava-se lentamente do maior com todo o cuidado possível. – Por favor faz ele sumir, Kevín... Faz ele sumir...
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Espelho - KELMIRO
FanfictionAquele reflexo que o imitava estava incomodando-o por demais. Incomodava demais ser ele. Era torturante, angustiante e adoecedor ser Ramiro Neves...