Morte. O campus, preenchido pelo odor pútrido dos corpos espalhados, fora pintado de vermelho-escarlate. Uma só pincelada dum autor desconhecido, e o que antes era verde e florido agora jazia monocromaticamente vermelho e sem vida. Ao centro de tudo aquilo, a pessoa que mais desejava não ter que encontrar ali. Estirada ao chão, Evellyn. Um buraco enorme em seu abdômen, que a atravessou por completo e liquidou quaisquer resquícios de peito ou barriga que ali estiveram.
Aquilo fez Hide cair de joelhos ao chão.
"Por que... por que ela...?", perguntou, trêmulo. Não era isso o que queria, não era isso o que desejava. Não haviam prometido passar o verão juntos, como fizeram ano passado? Jurado ficar um ao lado do outro, nos melhores e piores momentos? E quando mais precisava, onde esteve? O que teve de fazer, que era mais importante que cuidar da amada? Nada, nada nesse mundo iria se equiparar ao amor que sentira por ela.
Hide não tinha força nas pernas, seus joelhos não o obedeciam, e seus pés não se firmavam ao chão. Teve ânsia, tontura, fraqueza e todo o resto de uma só vez.
"Não é aquele o namorado da Evellyn?", ouviu, erguendo a cabeça lentamente. Quase não conseguiu ver, ao fundo, os três rapazes que surgiram em meio aos corpos. Dois com espada, um sem item em mãos. "Porra, olha só o estado dele!"
"Acho que ninguém ficaria são depois de ver o estrago que fizeram com a namorada dele." continuou um segundo, que carregava a espada menor. As risadas eram incômodas, desagradáveis e constantes.
A respiração de Hide se tornou inconsistente à medida em que o trio se aproximava. Passos zombateiros que atropelavam sem remorso as carcaças, pisoteando o sangue fresco que preenchia o calçado.
"Céus, Hide! Onde você esteve, cara?" Daniel estava certo, droga. Onde estava ele, quando ela mais precisava? Hide não conseguia parar de tremer, e não era apenas pelo choque. "Ela até tentou lutar de volta, mas você sabe... Isaac não consegue se controlar quando fica animado."
Mais uma vez, as risadas em conjunto lhe preenchiam com um ódio inexplicável. Como eram capazes de ter tão pouco apego à vida assim? Malvados por natureza, carrascos desde o nascimento? Não sabia. Murmurou algo em meio ao bater de dentes, ofegante, não conseguia mais controlar a respiração.
"O que disse? Fala mais alto, Hide!", comentou o que não carregava nada. Isaac era seu nome, para ser mais preciso.
"Eu vou... vou matar todos vocês...", grunhiu Hide, que quase não conseguia conter a sede de sangue que consumia seu corpo da cabeça aos pés.
"Você? Hahaha, não me faça rir, Hide! Sua habilidade apenas afasta as coisas, combina com sua personalidade! Um poder covarde, que afasta o perigo, pra alguém igualmente covarde." Isaac se aproximou de seu rosto enquanto falava, cerrando seu olhar. Seus olhos verdes, penetrantes, — parcialmente obscurecidos pelo loiro de seus cabelos, agora que estava semi-curvado — não o viam como um igual. Para ele, Hide era inferior. Um inseto a ser esmagado, talvez menos.
"Seu Aspecto deve ser fruto da covardia de alguém, sabe? Aspecto da Fuga, Aspecto da Divisão? Quem sabe, um Aspecto podre que achou conforto em realizar um contrato com alguém igualmente fraco. Draco, mata logo esse imbecil."
Draco era o da espada maior, e servia para o papel de carrasco. Com um sorriso que ia de orelha a orelha, pôs-se de prontidão ao lado de Hide, que ainda fitava com atenção o corpo de Eve. Havia se calado, e estava transtornado pela raiva, ignorando basicamente tudo ao seu redor. Raiva de Isaac, Daniel e Draco, por assassinarem sua namorada. Raiva de Sullivan, por abandonar o grupo durante o ataque. Raiva de Motreus, por atacar o Campus e causar tanta morte e destruição. Mas acima de tudo... raiva de si mesmo, raiva de sua fraqueza, de sua insignificância perante os três. Isaac estava certo, apesar de tudo.
O que podia fazer, sabendo que "Apartar" apenas afastava coisas umas das outras? O máximo que havia conseguido fazer era voar por poucos metros ao afastar o próprio corpo do solo, elevando-se ao céu. Talvez fosse útil a alguém que pudesse usar outras habilidades, mas não a ele. Sentiu-se fraco, mais do que já estava, e desejou gritar.
A espada de Draco iniciou a descida em direção ao pescoço de Hide, que virou seu rosto para o opositor. E então...
Um vazio infindável alastrou-se pelo campo de batalha, tendo como epicentro o próprio rapaz. Negro como o céu, cobriu terra e céus, deixando-o encapsulado num espaço de pura escuridão, tão extensa quanto o próprio universo. O tempo ao seu redor parecia estar congelado, afinal, antes de ser isolado do mundo exterior, percebeu que a espada parou a centímetros de onde seu corpo estava.
De repente, ouviu-se uma voz. Doce e suave, mas ao mesmo tempo, carregava certo pesar, certa tristeza. Materializou-se então à sua frente uma dama de vestido ainda mais escuro do que o ambiente ao redor, e que, mesmo assim, se destacava do negro infinito que os circundava, preenchido por apetrechos de ouro. Carregava consigo uma foice imensa, apoiando-se na arma como se fosse um poste qualquer. Tinha mais de dois metros, caso fosse medida de uma ponta à outra, mas ela a movia como se tivesse o peso duma folha de papel.
"Céus, ó céus... pobre criança...", disse a dama de pele branca e olhos vermelho-sangue. Seus longos cabelos negros podiam ser confundidos com o vestido que vestia, isto é, não fosse pelas pontas também vermelhas. "Temo que não me conheças, por mais que sejamos como unha e pele..."
Claro que não a conhecia. Quem, por toda Ishka, era aquela mulher? Nunca, nos livros que leu, havia visto feitiço como aquele, se é que podia ser chamado de feitiço. Estupefado, Hide olhou para a dama, que já estava o olhando há tempos. Era... incrível. A mulher mais bonita que havia visto em toda a sua vida, talvez mais do que sua própria namorada. Espera, no que estava pensando? Quem era ela, para lhe fazer pensar assim?
"Sua raiva é quase palpável, seu ódio não pode ser medido por meios comuns, minha criança..." E dito isso, se aproximou como um vulto de Hide. Tocou-lhe as bochechas com a ponta dos dedos, e ele sentiu como se encostasse num cadáver. Instintivamente, sabia quem era. Ela calou-lhe os lábios, dizendo para manter-se calado.
"Eu gosto disso. Suas emoções, elas me alimentaram por muito tempo. Desde quando sua mãe te ofereceu a mim como um sacrifício, há muito. Hide, meu pequeno Hide... como você cresceu, meu amor..." continuou a dama, dando a volta ao redor do corpo do protagonista. Abraçou-lhe por trás, envolvendo os braços ao redor do pescoço, e por um momento, sentiu que havia uma forca prestes a extinguir cada gota, cada resquício de vida que havia em seu corpo.
"Você já deve saber quem eu sou, mas devo me apresentar formalmente, de qualquer jeito. Sou o seu Aspecto, querido. O Aspecto da Morte, a Ceifadora, Lilith." A revelação havia sido um choque, por mais que estivesse esperando algo desse tipo.
"Lilith...? Isso... isso não faz sentido. Meu poder é afastar as coisas, dividir, não... isso." Contestou Hide, que tentava vislumbrar o rosto da Ceifadora uma vez mais.
O Aspecto da Morte soltou uma risada breve, deleitosa de se ouvir, e soltou o pescoço de Hide. Deu a volta e ficou mais uma vez à frente do rapaz, apoiada na imensa foice que carregava.
"O que é a morte, senão a separação da alma e do corpo, meu querido? Meu poder nada mais é do que a divisão entre o que é vivo e morto, o que você faz é apenas uma pequena porção da verdadeira habilidade."
"Então por que? Por que eu nunca fui capaz de fazer isso? Por mais que eu treinasse... se eu tivesse esse poder antes, eu poderia ter salvo a Evellyn!" Respondeu-lhe o garoto, desesperado. Se não tivesse lhe negado esse tipo de poder, tanto poderia ter sido evitado.
"Você vê, eu não sou tão sociável como os outros Aspectos, meu bem. Fico sozinha contigo, te observando de longe. Minha natureza difere bastante do restante, afinal... eu me alimento de sentimentos e emoções. Meu poder cresce de acordo com o que você sente, e nunca antes senti tanto ódio assim, de uma só vez. Foi isso o que criou essa ligação entre nós dois..." A dama enrusbeceu as bochechas, abrindo um sorriso traiçoeiro por entre as linhas do rosto. Sua língua deslizou para fora dos lábios, como se não conseguisse se conter mais.
"Mas se fosse simples assim, tudo seria muito mais fácil. Aspectos normalmente se comunicam com suas encarnações através de contratos, poucos são capazes de conversas assim, como essa que estamos tendo agora."
"E o que exatamente seria esse contrato?" Seria mentira dizer que não estava assustado, mas a sua curiosidade sobrepujava qualquer outro sentido.
"Eu quero tudo. Seu ódio, sua tristeza, sua felicidade, até mesmo parte do seu medo e repulso. Todas as emoções que você sentir serão minhas, e eu me alimentarei de todas elas. Em troca... você pode utilizar o potencial completo do meu Aspecto. O que você me diz, querido?"
"Com isso... eu vou poder vingar a Evellyn...? E-Eu vou poder trazer ela de volta à vida?!"
"Oh não, não. Os mortos não retornam, você deveria saber bem disso. Mas como a morte dela é recente, provavelmente vão conseguir conversar um pouco. Então, o que me diz?" Lilith estendeu sua foice e a colocou ao redor do pescoço de Hide, como se fosse cortar sua cabeça fora. Tudo dependia de sua resposta.
"Eu esperei tanto tempo por esse momento..." Respondeu Hide, soltando uma lágrima do olho esquerdo. Não iria mais ser fraco, finalmente teria poder para proteger o que lhe era querido. E poderia conversar com ela... uma última vez...
"Chore, minha criança. Chore, pois você será incapaz de soltar lágrimas a partir de hoje, e viverá submisso a mim."
"Certo... eu aceito." Confirmou, levemente relutante.
"Hoje, o Hide fraco e incapaz morre. Avante, meu amor. Mostre a eles o inferno na terra." Concluiu a Ceifadora, com um sorriso tentador no rosto. Movimentou sua foice de uma só vez, guilhotinando o pobre Hide com a precisão de um cirurgião. O velho cadáver tombou ao chão, e da sombra surgiu um novo e mais capaz corpo, guiado pela própria Encarnação da Morte, o Arauto do Fim. E tendo feito seu trabalho, Lilith se despediu com um beijo em sua bochecha, somando-se à sombra do próprio, fazendo com que ambos se tornassem uma única entidade.
O vazio interminável dissipou-se tão rápido quanto surgiu, o tempo, ainda congelado.
Hide não mais sentia ódio. Nem tristeza, nem remorso. A lâmina de Draco não lhe fazia se amedrontar. O tempo lentamente retomava ao normal, e um único pensamento rondava a mente de Hide naquele instante. A última frase dita por Lilith antes de se despedirem.
"Mostre a eles o inferno na terra."

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Uma cena que eu estava afim de escrever.
FantasySó tem um capítulo pq eu não tô afim de escrever a história completa, mas esse capítulo ficou legal na minha cabeça e eu decidi escrever. 👍