Ferida

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Won - Coreano
Relutância em desistir de uma ilusão e encarar a realidade.

POV Wednesday

Não sei como cheguei a essa situação.
Um imbecil que deveria ser líder derramou capuccino na minha única saia restante depois da droga do apocalipse. E um outro paspalho que parece filho do Slenderman não para de tirar desenhos recém-feitos de mim do caderno sinistro dele.
Para início de conversa, essa merda toda começou com uma loirinha tropeçando na frente da minha casa...

POV Enid

Quando o mundo acabou? Ah, eu não lembro bem.
Mas tinha umas crianças gritando na calçada, animadas com os helicópteros que passavam como um enorme trânsito aéreo. Era uma cidade pequena, ninguém estava acostumado àquele tipo de agitação.
Na época, eu não sabia que o tráfego daqueles helicópteros destinava-se a evacuar todos os políticos e equipes da prefeitura - lê-se puxa-sacos - para fora da cidade. Se eu encontrar qualquer um deles aqui fora outra vez, vou lhes fazer tanto mal quanto eles fizeram a mim.
Se o mundo acabasse, jamais esperei que algum político me salvasse, mas cara, eles podiam ter nos avisado. Muita gente teria se salvado. E não me venha com essa merda de "ui não, isso ia causar pânico e histeria em massa", mano você não se importa com o coletivo, só queria salvar a sua pele.
Vai por mim, eu entendo, mas não seria a maior babaca do mundo por isso. Tipo, é super ilógico querer acelerar a extinção da sua espécie, nós já estávamos fazendo isso, era questão de tempo. Agora, coisas parecidas conosco estão nos caçando.
Não me leve a mal, eu não guardo rancor - mas não me dê a chance de me vingar. O mundo ficou uma bagunça, quer dizer, um pouco mais do que estava antes.
Como Ajax disse ontem: pelo menos a guerra na Ucrânia acabou, né. Ele estava chapado, mas para ser sincera, eu bem me lembro de assistir nas notícias ao vivo uns zumbis mastigando a cara dos mercenários russos. Acho que já faz meses. Bianca diz que o termo "zumbi" não pega bem e um total de zero pessoas aderiram ao protesto dela; porque, afinal, eles são igualzinhos aos que antes só existiam nos filmes.
A maioria é, tem outros que... Vish, não quero nem falar disso. Hoje é meu dia feliz. Sábado. Como eu sei que é sábado? Não sei, todo dia é sábado agora. Ou domingo, sabe, fim de semana ilimitado, tem suas vantagens.
Yoko continua insistindo que estou em negação, mas se eu tô mesmo, me explica porquê passo dia e noite procurando a minha família.
Fala sério, até parece que eu perdi a noção do perigo, como se o mundo antes dos mortos-vivos fosse um poço de segurança. É por isso que sempre fujo, preciso descarregar da energia pesada que é ficar na colônia. Ideia do Eugene chamar assim, algo sobre coexistência e cooperação, tanto faz.
O lugar é legal, a gente ainda se dá bem, mas já fiquei de saco cheio das brisas do Ajax, ou das buscas constantes da Divina por maquiagem nas farmácias saqueadas e sem falar nos comentários niilistas que a Bianca solta sobre o fim do mundo. Como se precisávamos de mais pessimismo.
Principalmente depois do que aconteceu com o Kent... e a porra do assunto virou um tabu. Me estresso quanto a isso, mas sou a favor de conversar sobre o que aconteceu, já o resto do pessoal parece ignorar o peso dos fatos.
Perdemos um dos nossos e a coisa toda desandou.
Até o Eugene ficou desanimado, há uns dois dias eu não consigo parar de pensar que nenhum de nós vai sobreviver...
Mas quando recupero a razão, esqueço a minha espiral de autopiedade e sacudo a poeira. Tudo que é vivo morre, enquanto estiver viva vou tentar conquistar algo de útil com a vida que ainda tenho.
Minha terapeuta dizia que seres humanos não deviam se chamar de "úteis", porque tal conceito não se aplica a nós, não somos objetos; embora, na verdade, eu só consigo me sentir uma engrenagem na máquina de sobrevivência cega que o meu grupo de amigos virou. Nós éramos do mesmo internato e acabamos presos nessa cidade por força maior do acaso, sozinhos contra as centenas de zumbis que se ocultam em cada beco, rua esfacelada e até nos topos dos prédios de Jericho.
A cidade não estava assim no começo, e sinceramente, acho que aguentou bastante, todavia, no cenário atual cabe ressaltar algumas localizações: a princípio Bianca e companhia - como ela nos chama - ficavam em Nevermore, que continuou sendo nossa casa por 3 meses, horda após horda resistindo, mas um motim liderado por Tyler Galpin ferrou todo mundo.
Teve gente que seguiu ele - eu não culparia todos que se juntaram, sabíamos que uma hora a comida acabaria - e houve quem ficasse contra, mas aqueles que se saíram melhor da situação foram os que fugiram da confusão, esse é meu caso. Yoko e Divina passaram pelo território de Nevermore no último verão, tentando avistar sobreviventes, mas o que encontraram foi somente o vislumbre de um infectado na janela do prédio principal, e isso já basta, caso haja um único morto-vivo, ninguém lá dentro deve estar livre da infecção.
De qualquer forma, não poderíamos voltar mesmo para lá, Tyler acionou as minas terrestres que ficaram desativadas no subsolo do internato por pelo menos 40 anos. Um passo em falso e boom-boom, bye-bye.
Cara, se eu pego esse moleque, acabo com a vida dele.
Do que eu tava falando? Localizações, né? Foi mal, ando esquecida. Enfim, Jericho é basicamente um retângulo, se você desenhar um mapa da cidade coloque a praça central no meio - sem considerar o relevo do terreno, Nevermore a noroeste e a minha casa, vulgo colônia, a uns 15 graus de latitude sul do colégio.
Agora a questão, por que tudo isso importa? Porque, como eu disse, estou procurando a minha família, quer dizer, não que meus amigos não sejam minha família também, mas... entendeu? Acho que tô sendo muito babaca, preciso comer. E levar pros outros, faz quase 1 mês que não saímos para patrulhar a vizinhança e estocar comida.
Já estou a caminho de mapear um novo local, mal conhecemos a situação da cidade como um todo, então leste e sul são mistérios para nós. Costumamos sair em duplas, apesar disso, aposto que não vão se importar quando me virem com sacolas de supermercado lotadas.
Sei que não é muito seguro, mas os últimos meses têm sido quietos, vou correr o risco. Nunca me afasto demais, posso ir e voltar rápido com meu skate, e no momento só estou indo calmamente para o leste. Embora desejasse ser mais veloz.
Realmente odeio ver os resultados do fim do mundo ao vivo e a cores, o asfalto rachado e os corpos em decomposição lenta nas calçadas, carros acidentados que atravessavam as paredes de algumas casas. É por isso que prefiro olhar pra cima. A Terra parecia ter levado um soco ultra forte de Mercúrio e agora apenas uma parte da superfície começava a desmoronar.
Eu desviei o olhar por um segundo ao passar pela avenida St. Sebastian e tropecei num pedaço solto de alvenaria. Meu skate alçou voo, acertando o batente de um casarão pintado de preto que destoava das outras casas ao redor.
Olhei para os lados, diferente do resto da rua, aquele lugar parecia limpo, não havia nem sinal de zumbis ou mesmo vítimas da carnificina próximos da mansão. Eu semicerro os olhos a tempo de sentir o corte feio que tinha nos lábios, passei a língua e a dor subiu, praguejei baixinho.
Coloco a mão na cabeça procurando por algum machucado mais grave, e assim que encontro um galo na testa, a porta da casa escura se abre com um movimento poderoso e apressado.
- Deixa as mãos na cabeça. - disse a garota de tranças emergindo porta afora.
Obedeci de imediato, especialmente porque estava com medo do estrago que aquela arma enorme dela podia fazer na minha carinha alegre.
- Pugsley! - ela gritou, passando a escopeta com cuidado para as mãos do menino que era menor.
- Não ma-mata ela, Wed. - gaguejou o moreno, ele parecia ter a idade do Eugene - Ela não tá infectada.
- Silêncio. - respondeu metódica.
A mulher parou na minha frente e ajoelhou bem como eu fazia, ela puxou meu rosto para perto, estremeci com a pegada brusca dela.
Para a minha surpresa ela puxou uma luva do cinto que usava e após colocá-la, enfiou a mão na minha boca. Me olhou bem nos olhos e analisava algo embaixo da minha língua.
- Sem vermelhidão na esclera, gengivas aparentemente saudáveis... sem ferimentos. - ditou a tal Wed - Desculpe por isso, mesmo que você não tenha nos atacado diretamente ainda poderia estar infectada, não é?
Eu queria responder, no entanto não conseguia assimilar, aqueles dois malucos vivendo escondidos na Jericho pós-apocalíptica e desolada com frequentes invasões zumbis. Não fazia sentido que estivessem vivos.
- Bom, adeus. - completou direta.
- Não, espera! - dissemos eu e Pugsley em uníssono.
- Ela tá ferida sim, tomou um tombo grande. - argumentou o menino.
- E onde que isso é culpa minha? Ela que não olhou aonde estava indo. - retrucou a maior.
Detestei como eles falavam de mim, como se nem estivesse ali.
- "Ela" pode falar por si mesma. - levantei do chão, os joelhos um tanto trêmulos - E eu só caí porque tinha um pedaço de uma casa no caminho.
- Ah, perdão se a limpeza da rua não está do seu agrado. - disse Wed com um sorriso cínico satisfeito.
Revirei os olhos e fui atrás do meu skate. Quer que eu vá, Wed? Eu vou.
- Wednesday! - ralhou Pugsley - Sabia que isso é crime? A gente pode ser indiciado por causar o acidente, tropeçou na nossa calçada então a culpa é nossa.
- A calçada é pública, aliás o mundo antigo caiu, nem existe mais essa de tribunal ou condenação. Quem seria a juíza? Alice do Resident Evil?
Acabei rindo da briga entre os dois latinos, fico ainda mais surpresa que eles tenham sobrevivido um ao outro.
Wednesday olha para mim com raiva.
- Vai guardar essa arma, Pugsley. - pediu a mais velha.
Ela esperou o garoto entrar e estendeu a mão.
- Vem.
Eu só conseguia obedecer, como um soldado raso no jogo de poder que ela acabou de criar. Minha estratégia para lidar com essa gótica nervosinha: usar todo o meu charme e fofura pra ela não me varrer da face dessa terra.
- Se inventar alguma gracinha, eu corto a sua garganta. - Wednesday ditou severa.
É, acho que ser amigável não vai dar certo.
- Sim, general.
Se for possível, tenho certeza que ela me encarou com ainda mais raiva.
Wed não tirou os olhos de mim desde que entrei na casa, ela bateu a porta logo em seguida, Pugsley voltou de mãos vazias e a morena cochichou algo em seu ouvido. O menino correu para a cozinha e trouxe um cubo de gelo entre os dedos enluvadas.
Depois ele sumiu no casarão, ouvi seus passos ecoando como se subisse uma escada.
- Senta.
Admito que estou cansada de ser tratada como um filhote que ainda não aprendeu a usar o jornal. Do jeito que Wednesday me observa, fico com medo até de piscar. Sentei com a postura rígida no sofá.
A latina suspirou irritada, virou de costas e abriu um fundo falso no piso de madeira, revelando um kit completo de primeiros socorros. Ela ergueu a bolsa pesada de academia costurada com o símbolo de uma cruz vermelha.
Se ajoelhou novamente, fez um gesto com a mão para que eu me aproximasse, pressionou o cubo de gelo no meu lábio cortado com uma certa intensidade. Gemi de dor, mas sabia que não tinha jeito de não doer.
- Perdão. - Wed falou arrastado, puxando do estojo preto um medicamento dentro de uma bisnaga verde - Esse é caseiro, mas deve ter o mesmo efeito que um feito em escala. Você pode ficar, passe na área da contusão todo dia.
Eu assenti, sentindo como se ela fosse minha salvadora.
- Vou te mostrar o método de aplicação.
Wednesday pegou um algodão e mergulhou no unguento, indicou com os olhos como quem diz "é bom você decorar". E passou o algodão sobre a minha testa uma única vez, pelo menos ela o fez delicadamente.
A morena deixou o tubo comigo enquanto o gelo derretia na parte interna da minha bochecha. Senti a língua latejar, o corte ardia como se sofresse de queimadura por gelo, também, eu não deveria ter deixado no mesmo lugar tanto tempo assim.
Resmunguei de novo. Esperando que o calor da minha boca fosse suficiente para finalizar o pedaço de gelo disforme que ameaçava queimar as minhas papilas.
- Dói? - indagou Wed, tocando o canto dos meus lábios gentilmente com o polegar.
- Só um pouquinho. - falei embolado.
Wed me encarou por um momento, o rosto neutro, mas após o breve instante em que ela pareceu se importar com a minha vida, sua expressão mudou para uma de antipatia penetrante.
- Tem outras pessoas com você?
Eu sabia que ela poderia me matar por mentir.
- Sim.
E mesmo que não matasse, eu não mentiria.
- Quantos?
Parei durante uns segundos, contando nos dedos rapidinho.
- Seis... não, cinco. Mais cinco pessoas, eu moro com elas. Mas não tem ninguém comigo agora... - "em vários sentidos", pensei.
- Por que eu deveria acreditar em você?
- Em algum momento vai ter que confiar em alguém de fora daqui, não é? Questão de sobrevivência. Pense em mim pra essa possibilidade. - respondi tentando parecer segura, só tentando mesmo, como não tremer as pernas para esses olhos tão intensos? E bem, um tanto cruéis.
Wednesday coçou as sobrancelhas.
- Não dá pra confiar em mais ninguém. - ditou a gótica - Mas... se o seu grupo for de idiotas como você, acho que não vou ter com o que me preocupar.
- Vou assumir, tô um pouco ofendida.
Sorrimos insolentes uma para a outra.
O clima não pareceu pesado, não como lá fora, Jericho nada mais é do que uma versão de Chernobyl sem radiação e ainda mais acabada.
Aí eu escutei um bebê chorando.
Wed arregalou os olhos, pegou meu skate no canto da parede e jogou para mim. Quase acertou a minha cabeça.
- Tá na sua hora. Adeus.
Ergui o olhar, espantada com o quão rápido ela voltava a ser autoritária.
- Wed! Wed! Wed! Wed! - esse foi Pugsley descendo as escadas desesperado.
Um bebê meio pálido, de cabelo arrumado e um bigodinho engraçado - que certamente era pintado - chorava escandaloso nos braços do latino.
- O que eu falei sobre fazer o leite mais cedo?
- Sabe que eu não lembro! Tenho TDAH!
Wednesday engoliu a vontade de prolongar a discussão, segurou o neném no colo.
Eu só conseguia pensar no quanto eles têm sorte dessa rua estar totalmente vazia... ou talvez, nem tanta sorte assim.
- Você ainda tá aqui? - a mais velha ralhou, o pacotinho em seus braços se acalmava - Vou preparar a mamadeira, você dá o fora, entendeu?
E ela sumiu na porta da cozinha.
- Wandinha! - o irmão do meio brigou, eu ri do apelido - Desculpa por ela, costumava ser mais legal antes do fim do mundo.
- Eu tenho sérias dúvidas quanto a isso.
O latino gargalhou. Peguei o skate debaixo do braço e fui saindo da mansão, só então percebi o nome próximo ao número da casa: Addams, residência 127.
- Ei, o que você tava fazendo por aqui? Nunca te vimos antes. - Pugsley disse coçando os dedos nervosamente.
- Explorando. - digo de pronto - Procurando comida também, era tipo o objetivo principal.
Pugsley pensou um pouco e se aproximou devagar. Sussurrando cuidadoso:
- Não conta pra Wed... tem um mercado descendo a rua, as geladeiras tão lotadas, a gente não conseguiria comer tudo sozinhos mesmo, é melhor não desperdiçar.
Mirei o garoto e sorri agradecida. Dei um aceno antes de subir no skate, indo embora de vez. Meu medo da espingarda da Wandinha ainda tá fresquinho.
Desci no asfalto destruído da avenida St. Sebastian, como Pugsley falou os freezers estavam cheios. Não perecíveis ou semiperecíveis, nem importava, era o paraíso dos supermercados. Praticamente intocado. Podia observar da vidraça transparente, já que o mercado ficava protegido com uma tranca eletrônica, que é claro, Pugsley esqueceu de me avisar.
Penso em não tentar advinhar a senha, pois poderia alarmar, o que seria terrível para mim, numa zona que não conheço e suspeitamente livre de zumbis.
Bati a testa no vidro do janelão, pensando nas possibilidades da senha de 4 dígitos, até tentei calcular as probabilidades, mas de nada isso ia me adiantar. Através do meu reflexo, vi uma foto pendurada na bancada do caixa.
7 pessoas, reconheci Wed, uma versão sem pescoço de Pugsley, uma moça pálida com um vestido preto esvoaçante, um cara que parecia ter fugido da polícia - por estar algemado -, uma senhora que segurava um caldeirão, um homem super alto e um baixinho de terno roxo.
Eu soube internamente: aquela era a família Addams e esse mercado deve ser de algum parente da Wednesday. Me senti mal por estar invadindo... mas tipo, o Pugsley me deu permissão, né?
Deixando de lado essas dúvidas, limpei o sangue que escorria do meu nariz, fico com medo de ter uma concussão e a Wandinha não ter se preocupado em conferir. Não entendo nada de medicina, fiquei nas mãos dela.
Minha camisa cor de lavanda está suja com as pequenas gotas de sangue que escaparam, não sei o que fazer. Não posso voltar pra casa sem nada. O que a minha mãe diria?
É incrível o quanto ela me assombra mesmo sem estar perto. Um dia eu vou deixar alguma terapeuta muito rica por sua causa, mãe.
Então, um lapso de memória me dá um tapa na cara. Digitei o número residencial dos Addams no teclado: 1 2 7 _
O último número ficou piscando, me provocando. Instigando-me a chutar um dígito aleatório.
Pareceu a pior das ideias, e se essa coisa alarmasse?
Eu nem tinha certeza que esse era o começo da senha mesmo. Que lógica é essa, encontrar códigos perdidos por aí e completar desafios como numa escape room?
Porra, eu ri mentalmente, essa é a vida agora. Todo segundo era de tensão e suspense, é melhor aproveitar as dicas que entram no caminho. Chutei mesmo, 3. O número de filhos.
Não me julgue, fui racional.
E como alguém no roteiro da minha vida deve gostar de mim, deu certo.
"Poder do protagonismo", penso.
Fiz o possível para manter o local organizado como estava quando cheguei, ocultando minha presença aqui para Wed, não queria causar problemas ao meu novo amigo Pugsley. Eu não peguei muita coisa e coloquei tudo numa sacola de papel.
Depositei umas 60 pilas - abandonadas há meses no bolso da calça - sobre o balcão, dinheiro não vale mais nada, mas a intenção deve servir.
Quando saí, as portas se fecharam sozinhas, que saudade de tecnologia... e Wi-Fi. Principalmente do Wi-Fi.
Espera, tinha eletricidade lá dentro? Ah droga, eu devia ter carregado o meu celular, só consigo essa proeza caso encontre por aí uma tomada arbitrária que funcione. Não posso voltar, já escureceu, vou pra colônia atravessando o atalho das vielas.
Pode parecer perigoso, na verdade é,  mas fiz isso umas duas vezes, na terceira não vai me falhar. 3... não sai da minha cabeça; eram sete Addams, eu só vi três. E se agora só tem eles? Tão sozinhos? A minha consciência vai deixar eles esquecidos assim?
Mordi os lábios, apertando a sacola de papel no meu corpo. À frente, algo que me tirou dos pensamentos: um par de infectados devorando bocados de carne fedorenta. Esses desgraçados preferem literalmente morrer de fome do que comer uma salada.
Ajax diz que os carniçais são penosos, para ser justa, eu tenho pena, mas ainda odeio eles.
Senti vontade de vomitar e me perguntei se não era uma espécie de piedade matar os dois, todavia, decidi passar furtiva, porque o cabo da minha faca começava a ficar frouxo e eu não devia pegar lutas que posso evitar. Vão acabar morrendo de fome, como já tinha visto em outros infectados.
De qualquer forma, fiquei com um nó de marinheiro no estômago enquanto ia saindo de fininho.
Chego a minha rua, saquei a chave, joguei-a na fechadura e girei a maçaneta em forma de abelha. Eugene estava sentado no sofá, folheando uma HQ, imagino que esses quadrinhos sejam ultra raros agora, sabe, as editoras não devem mais existir.
- Trouxe comida. - avisei.
Yoko apareceu na velocidade de uma atleta olímpica, passei logo a sacola para ela.
- Valeu.
- Salgadinhos? - questionou Ajax - Quem você teve que matar por isso?
Em resposta, apenas dei de ombros. Preciso dormir, esqueci que fome existe.
- Enid? - Bianca chamou - Vem comer.
- Não tô com fome.
- Eu não pedi, eu mandei. Vem comer.
Cara, eu odeio a Bianca agindo como mãe. Ela pôs um prato quente na mesa e me fez sentar.
- Onde é que você tava? Eugene ficou preocupado. - disse a leonina mandona.
Do outro lado da mesa, Eugene desviou o olhar, retirando uma embalagem de leite em pó do saco de papel. Não consegui sustentar o olhar para Bianca.
Sou grata por tudo que ela faz, sou sim. Mas não é como se eu estivesse tentando sumir. Ou me destruir... ou andar sozinha por aí o dia todo no apocalipse. Ou me jogar no desconhecido com nada além de uma faquinha de caça e a minha mente instável de jovem adulta.
Acho que não tô dando muito valor pra minha vida.
Espetei com o garfo um pedaço do bife bem passado que Bianca cozinhou para o grupo, fiquei até triste de engolir, de tão gostoso que estava.
- Galera... preciso de ajuda.
Devo ter soado muito miserável porque Bianca largou os talheres ao lado do prato, Divina a seguiu. Yoko e Ajax que antes se empanturravam soltaram as Ruffles sabor churrasco.
E eu me livrei da minha doce ilusão de que estava tudo bem.

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