Algum dia eu vivi, eu sei disso, mas também morri, e por isso estava ali.
Lembrava-me vagamente de ver, ouvir e sentir coisas, mas não sabia quando, pois o tempo parecia não passar naquele vazio sem fim.
Eu não sabia dizer se estava claro ou escuro, se era quente ou frio, se era bonito ou feio. Era apenas nada.
De repente, porém, algo mudou.
Uma voz sussurou ao longe:
- Fale comigo.
No mesmo momento uma luz surgiu à minha frente e o ambiente tomou forma.
Eu me vi em uma sala pequena, rodeada por pessoas, quatro delas, e mais um rapaz sentado bem na minha frente, a mão estendida, me encarando com os olhos arregalados.
Sem entender muito bem o que estava acontecendo eu estendi minha mão também e segurei a dele, sentindo o toque de sua pele suada.
- Deixo você entrar. - ele disse.
E de repente eu senti um puxão.
Fechei os olhos com força e ao reabrir eu estava do outro lado da sala, sentada na cadeira onde antes estava o rapaz.
Olhei para baixo e percebi que eu havia me tornado o rapaz e estava apertando uma mão feita de gesso que estava sobre a mesa.
Senti meu coração bater com força, puxei o ar para os pulmões e mexi os dedos, abrindo e fechando a mão livre.
- Ah... - gemi, ouvindo a minha própria voz soar grave e falhada.
A sensação era ótima. Estar viva era ótimo.
Eu me lembrava de ter esperado muito por aquele momento, de ter hesitado em segurar a mão e dizer as palavras...
Aquela era a melhor experiência de todas.
Olhei ao redor.
Dênis, meu melhor amigo, me encarava assustado e ao mesmo tempo extasiado. Ele ainda não havia experimentado aquilo.
Carol era a namorada dele e estava sorrindo super animada.
Renato estava segurando o celular com o flash da câmera ligado para registrar o momento. E Bruno estava cronometrando. Não podíamos passar dos noventa segundos.
Mas eu queria ficar mais.
Segurei a mão de gesso com firmeza e tentei me levantar, mas estava amarrado à cadeira.
- Me soltem. - eu pedi.
- Desculpa cara, mas não podemos. - respondeu Bruno sorrindo.
- Me deixem viver. - eu implorei - Eu quero sentir.
Todos riram, mas não me soltaram.
Bruno se aproximou ainda rindo.
- Você quer sentir? - perguntou me dando um cutucão no ombro.
- Não seja babaca. - respondeu Dênis para Bruno.
- O que foi? - perguntou Bruno dando de ombros - Ele disse que queria sentir.
Eles riram novamente.
- Eu quero. - respondi com firmeza. - Quero sentir, qualquer coisa que seja.
- Infelizmente o seu tempo acabou, babaca. - sorriu.
Ele tentou tirar a mão embalsamada de mim, mas eu a segurei com mais força.
- Eu não vou embora. - avisei.
Ele puxou a mão, mas eu a segurei com mais força ainda.
- Ajudem aqui. - ele pediu para os outros - O tempo ta acabando.
Eu puxei meu braço bruscamente e movi o corpo com força, de maneira que fez com que a cadeira caísse no chão.
Todos vieram para cima de mim, mas eu virei meu corpo sobre a mão, segurando-a firme.
Senti outras mãos me puxarem, mas estas não eram físicas e exigiam a vez delas, mas eu não voltaria para o vazio nunca mais.
A adrenalina, o sangue pulsando freneticamente por minhas veias, o ar entrando e saindo dos pulmões, os puxões e arranhões dos meus amigos, tudo era excitante.
Bati minha cabeça com força contra o chão, sentindo a dor aguda percorrer meu corpo.
Movi-me com violência mais uma vez, me debatendo até a cadeira se quebrar e as cordas se soltarem.
Com a mão livre eu estapeei a cara de Bruno.
Minha mão ardeu e formigou.
Agarrei Carol pelo pescoço, apertando com toda minha força, sentindo-a se contorcer e implorar por ar.
Dênis começou a me puxar.
- Solta ela! - gritou desesperado.
- Isso! - eu comemorei - Eu quero sentir mais!
Larguei a garota, segurei Dênis pela camisa e o empurrei contra a parede.
Lambi seu rosto, sentindo o gosto salgado do suor em sua pele.
- Isso é maravilhoso! - gritei - Viver é maravilhoso!
Eu ri.
Fui surpreendido por uma dor aguda em minhas costas.
Renato havia cravado uma faca próximo ao meu ombro.
Ri ainda mais e arranquei a faca num puxão, sentindo o sangue jorrar do ferimento.
Renato deu um passo para trás, mas eu enfiei a faca em seu olho esquerdo.
Bruno me deu uma rasteira, me derrubando no chão, Dênis segurou meu braço livre e então eles puxaram a mão embalsamada e tudo voltou a ser nada.
Mas o nada já não era mais o mesmo.