5- UMA REALIDADE HORRENDA

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CHEGO EM CASA EXPLODINDO INTERNAMENTE.
A nobreza me ridicularizou, a madame é uma psicopata. Será que ela não entende o próprio filho? E o ministro é um mal-educado!
É inacreditável como todo mundo ama a nobreza! Mal sabem o quanto todos são superficiais e falsos! Empurro a porta da cozinha devagar, não quero que Paulo e Alicale me atormentem logo agora.
Sou capaz de queimar pessoas, mesmo não tendo o poder do fogo.
Olho tudo em volta, a cozinha está vazia. A casa inteira está. Não ouço Alicale brigando aos berros do segundo andar com Paulo, nem ele a xingando baixinho do sofá, fingindo ignorá-la. Viajaram cedo.
Fecho a porta atrás de mim e acendo a luz. Fico em choque.
Eles viajaram e largaram tudo sujo e bagunçado para eu arrumar. Minha bolsa cai no chão.
Eles sempre fazem isso, sempre! Sorrio triste. Adotaram-me apenas para ter uma empregada que recebe auxilio-órfão do estado, essa foi a finalidade. ''Dois coelhos com uma cajadada só'', como diz Paulo.
Pego minha bolsa e subo para meu quarto. Abro a porta e deixo minha mochila na cama. Cada um com a realidade que lhe é presenteada... concluo e desço as escadas, pegando as roupas sujas espalhadas por toda a casa.
Coloco-as para lavar na máquina no quintal, e volto para a cozinha. Não entendo como duas pessoas conseguem sujar tanta coisa assim.
Olhando a louça qualquer pessoa concluiria que foi usada por, no mínimo, doze pessoas. Puxo a lixeira embaixo da pia, e um monte de panelas sujas caem aos meus pés.
- E Alicale se diz organizada e limpa! - murmuro olhando toda a imundícia que ela deixou para eu limpar - ''Por que eu vou fazer, se tenho uma empregada para isso?'', claro Alicale, claro...
Levo uma hora para acabar a louça, e corro no quintal para colocar as roupas no varal. Olho o relógio da cozinha, marcam onze e vinte. Coloco outras roupas para lavar, e subo para limpar os banheiros.
Um mais sujo que o outro, e ao total são três.
Bom que não deixo minhas coisas em nenhum dos três banheiros. Puxo um bolo de cabelo do ralo.
- Bom mesmo...

* * *

Começo a riscar de minha lista mental as coisas que fiz, enquanto o ferro de passar roupas esquenta.
- Lavei três remessas de roupas;
- Lavei os três banheiros;
- Lavei a cozinha;
- Tirei teias de aranhas inexistentes da casa;
- Lavei, enxuguei e guardei a louça;
- Arrumei cinco quartos;
- Troquei lençóis, toalhas, tapetes, capas e cortinas;
- Tirei poeira de todos os moveis.
- Limpei as janelas da casa por dentro e fora;
- Varri toda a casa e encerei o piso;
- Tirei todo o lixo;
- Preparei a janta...
E agora estou terminando as roupas, para guardar tudo enquanto o ensopado termina de cozinhar.
Passo a mão na testa. Eu estou cansada, e espero não estar esquecendo nada, pois, Alicale vai farejar por defeitos, por mínimos e inexistentes que sejam. Tiro o ferro da tomada, e o guardo na prateleira da sala anexa à cozinha.
Suspiro e vou à cozinha desligar ao fogão. Não me gabando, mas eu cozinho bem. É o que as visitas de Alicale dizem quando vem jantar aqui.
''Minha nossa Alicale! Que mãos maravilhosas para a cozinha você tem!''
Óbvio que ela recebe os elogios como se realmente fosse ela quem cozinhasse tudo. Quando ela cozinha algo, é tão horrível, que até veneno de bruxa é um remédio doce, em comparação.
Sorrio sentindo meu corpo doer. Subo e aproveito para levar as roupas passadas comigo.
As guardo em seus devidos lugares.
Suspiro. Acabei.
Corro para meu quarto, pego alguma roupa na cômoda pequena e entro no armário velho de portas compridas.
Nem Paulo e Alicale sabiam dessa.
Fecho as portas à minha frente, afasto os cabides e empurro uma pedra do chão para a direita com o pé, e a parede se abre atrás de mim. Viro e entro no banheiro.
Encontrei esse banheiro por acaso, em um dos dias que fiquei sozinha em casa aos nove anos, e desde lá nunca mais usei os outros banheiros da casa. Coloco minhas roupas no gancho, ainda lembro de ver Paulo me observando, pelas frestas da porta de um dos banheiros da casa... nunca senti tanto medo na vida. Então esse banheiro secreto foi uma salvação.
Felizmente aprendi a me proteger, e a não confiar em ninguém. Tomo banho e lavo meu cabelo, arrumo-me e saio quieta.
O relógio da praça central começa a badalar. Já são seis horas.
Desço para jantar antes que Paulo e Alicale cheguem. Janto enquanto ponho a mesa. Cubro tudo, lavo e guardo o que sujei e subo.
O relógio bate mais uma vez, já passaram quinze minutos.
Engulo em seco, olho tudo rapidamente: tudo está no seu devido lugar.
Suspiro contente e corro para meu quarto. Finalmente posso estudar um pouco.
Abro meus livros e cadernos, ouço um barulho de carro na rua, suspiro...
Um... dois... Três.
- Que inferno, Paulo! - Alicale grita com Paulo ao entrarem em casa, ela parecia furiosa - Por que não para de reclamar de tudo que faço? - grita mais alto.
Alguém bate a porta com força, estremeço de medo. Eles devem estar bêbados. Bem, ela deve estar.
Ou é somente Alicale estressada...
Não sei qual é o pior: Alicale bêbada ou estressada. Tento me concentrar na leitura que a professora passou, porém, Alicale continua zoando.
Porém os berros altos de Alicale não cobrem o som de alguém subindo as escadas: Paulo...
Pego um lápis pontudo e o deixo perto de mim e visível para Paulo.
Preparo-me.
- Aqui está você. - Paulo fala bruscamente me deixando arrepiada, ao abrir a porta de meu quarto de vez.
Levanto rápido, largando meu livro em cima da cama.
- Hum! - resmunga ao olhar minha cama cheia de livros - Temos quatro visitas essa noite. - avisa com frieza - Dois pretendentes para você. - completa com um sorriso malicioso.
- E quais são as ordens? - indago com seriedade.
Não tenho quinze anos completos, e já tenho pretendentes. E adivinhem? Sempre são garotos na faixa de vinte e vinte e cinco anos. Pois, no pensamento de meus sábios pais, sou ''rebelde'' e tenho que ter alguém autoritário para me governar, colocar ''rédeas'' em mim para o resto da vida.
Paulo e Alicale sempre mandam-me recusar os pedidos de rapazes que não tem sangue bom. Ou seja, que não são ricos o suficiente para eles.
Mas o pior de tudo, é quando sou obrigada a mostrar os jardins da casa para os pretendentes que são ricos, brilhantes como diamantes para Alicale.
Já fui agarrada a força e quase beijada. Minha salvação é a coisa mais abominável que se exista: não tenho magia.
Nada apavora mais um homem do que a ideia de ter filhos sem magia. Óbvio que eu sou castigada depois que dispenso pretendentes ricos, Alicale simplesmente não me perdoa. Para ser sincera, prefiro ser castigada do que casar assim, é menos terrível.
Pois, casando assim, ainda continuaria presa, porém com um carcereiro novo e mais impiedoso, que se acharia dono até de minha alma!... Então ser castigada é menos terrível. Ouço meu coração murmurar algo idiota. O sufoco.
Não existem sentimentos sinceros no meu mundo.
- Aceitar o pedido de qualquer um dos dois. - Paulo murmura, me olhando de cima a baixo - Eles são sobrinhos do Ministro de Magia. - ameaça com frieza, engulo em seco - Não faça idiotices. - ordena entre os dentes, e me olha feio.
Abaixo a cabeça e ele sai do quarto. Cale a boca coração, eu não tenho escolha. Fecho os olhos com força e suspiro.
Não existem sentimentos reais em meu mundo...
Tento me recuperar.
Afinal, eu só preciso sorrir... ser tola... e no futuro, quando me oferecerem jóias, aceitar sorridente e grata (pois é uma desculpa bem cara por me trair), e assim serei uma esposa perfeita para qualquer cara esnobe e rico. Sorrio triste.
Por que a vida é tão cruel?
Desço controlando meus nervos.
- Está menos estérica, Alicale? - Paulo pergunta bem-humorado.
Claro que ele está feliz. Vai me vender para um dos sobrinhos do Ministro da Magia, tem coisa mais festiva que essa?
- Não faça nenhuma besteira ou vai se arrepender amargamente. - Alicale me ameaça quando me vê, concordo relutante - Coloque mais pratos à mesa. - ordena e me dá as costas.

PRIMAVERA: Não tenha medo de florescer Onde histórias criam vida. Descubra agora