Prefácio

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Perdoe-me, Pai, pois tenho pecado...

Nahum, você está bem?

A voz do padre Benjamin era suave ainda que grave, flutuava abafada na cabine estreita do confessionário. Ele emanava uma ligeira preocupação. Pelo periférico, Nahum percebeu um relance de suas grossas sobrancelhas grisalhas franzidas uma contra a outra, o pescoço do velho levemente inclinado em sua direção, muito mais próximo do que o habitual. Diante da ausência de resposta, ele emitiu um pigarro, e repetiu a pergunta, naquele mesmo tom; aquela paciência cristalizada que para Nahum era característica de todos os padres que já conhecera. Um alento paternal, maduro, sólido como gelo, ainda que caloroso...

 Filho? Eu estou preocupado com você.

Nahum quis rir. Usualmente tinha um espírito alegre, mas dessa vez a risada seria sarcástica, um pouco maldosa. Ambígua, e ele a libertaria como quem finalmente liberta um segredo sujo há muito guardado.

Eu só parei para refletir, desculpe-me.

Encarou-o diretamente através dos arabescos de madeira que os separavam, eram belos entalhos: caules retorcidos, simétricos, que exalavam um cheiro forte de eucalipto e capim-limão, assim como cada centímetro da madeira em torno deles.

Gostaria de compartilhar os sentimentos que pesam em seu coração?

Diante da oferta, Nahum suspirou baixinho. Olhou para cima, para as ripas no teto, e em seguida para os próprios joelhos, cobertos pelo tecido de linho cinza da calça de alfaiataria que vestia.

Sim — mentiu —, é claro. — E prosseguiu com a mentira.

O silêncio que se seguiu era pesado, tanto o pai quanto o pecador sentiam-se imersos em petróleo, uma substância densa, que limitava-os os movimentos, até mesmo a respiração.

— Sinta-se a vontade para começar... — Era apenas uma sugestão, sem nenhuma nota de curiosidade ou de impaciência. Uma sugestão cordial, quase que penosa, como se Benjamin fosse conhecedor das perturbações de Nahum e mesmo assim lhe oferecesse consolo, não importando a feiura de cada um de seus pensamentos. Ao dar-se conta disso, ali dentro do confessionário, sentiu-se imensamente culpado. Havia decepcionado Deus em pessoa.  

Engoliu as lágrimas entaladas na garganta.

— Padre — era um fio de voz, tão sorrateiro e desistente quanto possível, silenciosamente implorava que não lhe forçassem àquilo —, talvez uma outra hora... Estou aqui há algum tempo, preciso ir embora. Prometo ao senhor que voltarei na semana que vem. Até lá, deseje que Deus possa confortar meu coração. 

Ergueu os olhos, e pela primeira vez desde que entrara no confessionário via os olhos de Benjamin sobre si. Eram olhos cansados, velhos, enrugados e de um preto tão escuro quanto a noite. Aqueles olhos o encarava fixamente, mas não eram inquisitivos ou acusadores... o olhavam com complacência, uma certa piedade, havia neles a possibilidade de perdão. Do perdão genuíno, que acolhe a alma e cessa o martírio; que oferece esperança e aquieta os temores. Havia naqueles olhos o sentimento com o qual Nahum desejava um dia poder-se olhar, no espelho, quando enxergava seu reflexo e tudo o que sentia em seu peito era desprezo, ódio e rancor.

— Reze três Ave Maria  e dois Pai Nosso. Esteja aqui na semana que vem, estarei aguardando por você.

Se despediu brevemente e saiu. Do lado de fora, quase na porta da igreja, sua família o esperava retornar. A mãe tinha o braço em torno dos ombros de seu irmão mais novo, seu pai estava atrás dela, ajeitando-lhe os fios despenteados do cabelo escuro... E um pouco mais distante deles, com as mãos entrelaçadas para trás, os cabelos dourados como o por do sol mais quente do ano, sua irmã sorria solitária, observando em silêncio as interações diante de si.  Ela o olhou quando se aproximou, e lhe sorriu com os olhos, e isso foi o suficiente.

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⏰ Última atualização: Nov 02, 2023 ⏰

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