É difícil até de lembrar como nos separamos. Saímos unidas, como duas amantes fervorosas; no carro, com as cabeças apoiadas uma na outra. Apaixonadas. Ela segurava a minha mão, delicada quase tímida. Sempre teve um toque macio aveludado que eu nunca tive. Esperamos alguém nos buscar e levar pra dentro, mas nada. Ficamos presas dentro do carro, sem saída, enfiadas num tênis All Star velho. Não sei por quanto tempo ficamos assim, sinceramente. Abraçadas dentro do carro fechado, sem ter como sair; tinham nos esquecido.
Por alguma cortesia do além alguém lembrou que estávamos ali, largadas a própria sorte. Nos tiraram do carro junto com o par de All Star, e num relance nos encontrávamos no quarto de casa. Jéssica, me ajuda aqui um minutinho, ouvi a mãe falando ao longe. Iam tirar as roupas para lavar, tinha certeza. Virei para minha amada e disse que tudo ia dar certo, logo ficaríamos limpas e confortáveis em alguma gaveta. Ela não precisava dizer uma palavra sequer, via no seu rosto a preocupação. Se eu pudesse sugar todo o mal estar dela para mim o faria, mas Jéssica não tardou a vir.
Estava munida de um cesto roupas semicheio, vinha buscar o resto das roupas no quarto. Logo atrás entra Pingo, com passos leves e latindo rouco. Estávamos as duas enfiadas dentro do maldito All Star, uma emaranhada na outra, numa terrível espera. Quando chega o dia lavagem a gente fica inquieto, nunca se sabe quando vamos rever o par, mas tentei tranquilizar minha amada. Já tínhamos passado por isso antes, íamos nos rever. Jéssica veio pegando as roupas espalhadas no chão, uma hora iria olhar para nós. Pingo sem cessar a acompanhava, com latidos e com o som das suas patinhas no piso.
Viro-me para minha amada. Está encolhida, amassada em mim; queria permanecer com o meu cheiro, com o gosto do meu beijo nos lábios. Tentei tranquilizá-la mais uma vez, em vão. Ela já tinha ouvido histórias de outros pares mais velhos, se assustava com a possibilidade da separação. Ainda mais a gente, casal novo e colorido. Num simples instante de desatenção, sinto num único golpe me levantar no ar. Maldita Jéssica.
Nos tirou de dentro dos tênis e, em um rápido movimento de mãos, ela separa nos duas do nosso abraço. Eu vejo minha querida, ela me vê. Estamos atônitas. Jéssica nos joga separadas em cima do cesto de roupas, junto com algumas blusas e nem sei mais o quê. Me sinto perdida, não consigo mais vê-la. O cesto balança de um lado para o outro e sinto meu corpo escorregar entre a pilha de roupas, estou tonta e trêmula. Um gosto de bile invade a minha boca e sinto como se fosse vomitar.
Ouço Pingo batendo com as patinhas aqui e ali, até que começo a vê-lo. Até que começo a ver o quarto e tudo rodopiando, o chão ficando cada vez mais próximo. Em um baque inaudível e leve, caio no chão. Pingo sem nem me dar bola, pisa em mim e me faz deslizar pelo chão frio. Me sinto mal, estomago meio embrulhado, mas consigo abrir os olhos e olhar ao redor. Escuro e empoeirado, estou sozinha debaixo da cama. Sou oficialmente uma meia perdida.
Minha visão tenta se acostumar com o ambiente mais escuro, olho ao redor procurando algum ponto de referência ou algo conhecido. Não vejo mais os pés de Jéssica nem as patas de Pingo; saíram sem me dar conta de mim. Olho mais uma vez para mim mesma, só para ter certeza que estou bem. Meus elásticos e fios estão todos no lugar e reconto meus corações vermelhos na estampa só pra ter certeza; os vinte e cinco estão nos seus devidos lugares. Meu fundo branco ainda está impecável, mesmo tendo sido usada a pouco tempo atrás. A ponta vermelha intacta, sem furos ou desfiados.
Pareço bem, mas me sinto péssima. Do jeito que caí Pingo pisou em cima de mim de me fez deslizar num lugar bem infeliz. Estou embaixo da cama, encostada na parede fria, do lado de um dos pés da mesma. Se eu quisesse me esconder não conseguiria fazer igual. Só consigo pensar Nela, na sua feição de susto quando nos separamos. E que está sozinha nesse mundão, sem mim para acalmá-la. Deve estar chorando nesse momento e eu não posso fazer nada.
Já tinha ouvido falar dessas histórias de separação e que, anos depois, as duas conseguem se reencontrar e etc. Ouvi também meias perdidas que nunca mais encontraram seus pares. Algumas ficam loucas, outras conseguem até que tocar uma vida "normal" depois do ocorrido. É bom ter esperança, mas não posso me iludir. Talvez eu nunca mais volte a revê-la.
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Não quebre o par!
Teen FictionSeparadas pelo destino, Não quebre o par! fala sobre o poder de uma paixão (quase) impossível. Trin entra numa batalha para reaver sua amada, enfrentando os piores desafios para sua classe, tudo as fim de remendar o que foi rasgado.