TEMPESTADE

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Mais uma noite péssima. Na última semana tenho dormido mal, acordo às três da manhã quase todos os dias, tenho sonhos estranhos com uma pessoa pedindo ajuda, mas não consigo ver nada na escuridão, somente ouço uma voz de súplica. Devo me lembrar de levar isso para minha terapeuta depois, com certeza isso deve refletir algo da minha infância, tudo reflete. É estranho como uma época aparentemente simples da nossa vida, onde só temos que nos importar em ocupar nosso tempo com o máximo de bobagem possível pode causar tantos bloqueios e traumas e como obviamente meus pais ( duas pessoas que deveriam ser exemplo do que não  fazer com um filho) foram importantíssimos nessa construção, ou melhor, destruição de persona. Enfim, estou trabalhando nisso. Por falar em trabalho, já passou da hora de me levantar da cama para minha labuta diária.
Ao sair de casa, notei o quanto o céu estava limpo, sem vento e um calor excessivo fora do comum. Eram apenas sete da manhã, mas a temperatura já beirava os trinta graus, algo muito incomum para novembro, embora não impossível, já que cada vez mais o clima está enlouquecendo. Voltei rapidamente para casa e peguei meu guarda-chuva pois, morando no Rio de Janeiro esse tempo era sinal claro de chuva à tarde. No momento em que tranquei a porta senti novamente a sensação de urgência, alguém pedindo ajuda. Em seguida, recebi uma ligação de minha sócia e  finalmente deixei o pensamento de lado, pois já era hora de ganhar a vida.
No final da tarde, finalmente ela veio, uma chuva torrencial, com muitos raios e trovões. O céu estava escuro e as nuvens tão espessas e pesadas que pareciam estar à dois metros de distância. Confortável no meu escritório ponderei sobre o como era bonito e poético o quanto a natureza pode ser violenta e suave na mesma intensidade, mas na minha tenra idade eu só via o lado cruel dessa mãe eterna. Lembrei-me logo de meus dias de adolescência vivendo com meus pais naquela merda de cidadezinha, foi a pior época da minha vida, pois, além de ter sérios problemas respiratórios, o que me fez ser uma criança destacadas das outras, devido meus pais não me deixarem fazer nada temendo que eu passasse mal, eu sempre fui... Diferente. Eu sou queer e hoje lido muito bem com isso, mas naquela época era bem difícil pra mim, mais ainda tendo pais extremamente tradicionais, mas bem tradicionais MESMO, sabe? Minha mãe era dona de casa e evangélica, daquele tipo que abre mão de toda vaidade pela religião, totalmente passiva e omissa quanto aos surtos do meu pai, que justificava suas noites de bebedeira e luxuria devido a necessidade de trabalhar dois turnos pra sustentar uma mulher que não podia dar a ele mais filhos e o único que ela deu ainda veio podre, um viadinho.
Já faz mais de vinte anos que não tenho nenhum contato com meus pais, desde que meu pai me deu uma surra colossal quando chegou caindo de bêbado à noite e me pegou na porta traseira de casa conversando com um amigo e supôs que eu estava fazendo algo "imoral" ali. Para ele eu era imoral só por existir. Minha mãe só chorava calada, nenhum grito, nenhum soluço, só lágrimas caindo pelo rosto. Era assim que funcionava pra gente, pois segundo ele, se os vizinhos nos ouvissem chorar e fossem lá apaziguar a coça seria dobrada. Na madrugada dessa mesma noite, coloquei tudo o que deu numa mochila e me mudei para a cidade grande, para a casa de amigos que fiz nas salas de bate-papo online, quando eu pagava dois reais por hora na Lan House unicamente pra poder conversar com alguém diferente da maioria, mas igual a mim e imaginar o mundo fora daquela prisão em que vivia. Passei por muito perrengue, mas fiz novos amigos, que são minha família verdadeira e foi com uma destas amigas que fundei minha empresa, que hoje vale milhões no mercado.
Confesso a ti que as vezes sinto um vazio no peito, como se faltasse algo pra conquistar, pra finalizar com relação a eles, principalmente sobre minha mãe, mas acho que não estou pronto para entrar nesse lugar ainda. Pelo menos era o que eu pensava.
Chegando em casa, depois de enfrentar um enorme engarrafamento devido bolsões e alagamentos por toda a região, liguei a TV enquanto me preparava para tomar um banho e relaxar quando me deparei com várias ligações de um número desconhecido, eram umas cinquenta ligações. Liguei de volta, mas não obtive resposta. Na TV eram exibidas matérias sobre a destruição e mortes causadas pela forte chuva, que provocou enchentes e deslizamentos por diversas áreas do estado, e uma delas era a cidade onde morei.
Novamente acordei às três da manhã depois de ter o mesmo sonho e dessa vez, meu celular tocou. Era o mesmo número de novo, lá fora o som característico de trovões indicava que a tempestade não dava sinal de trégua, peguei o telefone e atendi, com a  boca seca disse alô e esperei uma resposta, que veio um tempo depois, abafada e chorosa:
-Socorro!!
Na mesma hora reconheci a voz da minha mãe, meu coração acelerou e chamei por ela no susto, porém no mesmo instante a ligação caiu e como não poderia fazer nada naquele horário, somente esperei o amanhecer e o escoamento das vias para voltar para aquela cidade, aquele lugar que me marcou tanto de forma negativa, somente pedindo para que não me marcasse mais ainda.
Depois de esperar o amanhecer peguei uma grande garrafa de café que fiz de madrugada e parti para a viagem, seriam no mínimo duas horas e meia, já que apesar da chuva ter parado ainda havia muitos pontos de retenção no caminho.
Já na entrada do local me deparei com a imagem da destruição; casas totalmente arrasadas, arrancadas de suas bases e levadas para longe com a correnteza de barro vermelho, junto de vegetações, carros, lixo e vários corpos, inúmeros corpos pelas vias, alguns sendo retirados, outros sendo reconhecidos, outros destroçados pela força da natureza. O pequeno cemitério feito de forma precária em cima de um morro deslanchou junto com a maré de barro vermelho, levando consigo vários defuntos, caixões e lápides. Ao chegar no que seria a minha casa, encontrei apenas escombros e barro. Quando indaguei as pessoas do resgate porque eles não estavam escavando e chamando pelos meus pais ali, fui informado de que os esforços estavam concentrados em achar sobreviventes e a casa da minha mãe fora uma das primeiras a serem soterradas tornando quase impossível  um resgate com vida. Eram poucas pessoas ali para quantidade assustadora de desaparecidos, feridos e desabrigados. Voltei-me para onde seria mais ou menos minha antiga casa e, ao chegar lá, encontrei um homem agachado, um senhor cavando o chão desesperadamente com as próprias mãos, me aproximei e o chamei. Ao virar-se notei em seu rosto desespero, tristeza e arrependimento e ao ouvir sua voz, foi como se o chão e tudo ao meu redor sumisse de mim, nada me segurava mais ali, nada podia me afastar dele. Aquele senhor franzino e abatido, com o rosto cheio de lágrimas e sujo de barro era o meu pai.
Não consegui esboçar a mínima reação. Imediatamente entreguei a ele uma pá, arregacei as mangas e comecei a cavar assim como ele, que me olhava de vez em quando, esperando alguma coisa de mim, por menor que fosse. Mas aquele não era o momento, o meu foco ali era procurar a minha mãe e encontrá-la com vida. Continuamos por umas quatro (ou seriam cinco? Seis?) horas, até que meu telefone toca, ao pegá-lo notei que era novamente aquele número e ao atender às pressas ouvi a voz de uma mulher, que anteriormente pensei ter sido minha mãe, que dizia:
-Continue, só mais um pouco, ela está aqui.
Minha espinha gelou e no instinto continuei cavando incessantemente com todas as minhas forças até que enfim, bati num pedaço de madeira. Na mesma hora puxei todo ar disponível para dentro dos meus pulmões e com todas as forças que eu ainda tinha naquele momento dei o grito mais intenso e desesperado da minha vida:
-MÃÃÃE! ME RESPONDA, MÃÃÃE!
E depois o silêncio. Meu pai olhava fixamente para o pedaço à mostra de madeira como se esperasse algo e por fim, ele veio. O grito abafado de medo e dor e a voz da minha mãe.
Não lembro muito bem o que aconteceu depois, os bombeiros vieram à nossa direção e me afastaram dali para recuperar minha mãe, meu coração acelerou rapidamente e eu me senti nauseado, sentei no chão e respirei fundo várias vezes, até que vi o corpo de minha mãe sendo recuperado, levantei depressa e fui de encontro a ela, que chorava copiosamente, mas mal se podia ouvir pois a voz já não tinha mais de tanto pedir por socorro.
Fui direto para o hospital encontrá-la. Estava um caos; falei com uma recepcionista e ela me pediu para aguardar um pouco, pois estavam fazendo os primeiros socorros e minha visita logo seria liberada. Ao me virar em direção às cadeiras me deparei com o meu pai novamente, também esperando, inteiramente sujo de lama, com o semblante que transmitia uma tristeza que eu nunca vi em nenhum momento enquanto eu vivia com ele. Ao sentar-me ao seu lado, o silêncio criou um abismo de tamanho astronômico, é estranho o poder que a presença dele tinha sobre mim, mesmo depois de tanto tempo e dinheiro gastos em anos de terapia. Ele me olhou, pude ver de soslaio, e então virei minha cabeça para olhá-lo também. Ele entrou na minha alma naquele momento, com o olhar mais suplicante e sofredor que eu já senti e então, abriu a boca e falou: "Filho...me perdoe. Filho...obrigado". Eu não consegui falar nada novamente, só fiquei ali olhando ele, que estendeu a palma da mão para mim e eu coloquei a minha própria mão sobre a dele e entrelacei meus dedos nos seus no único momento de carinho que partilhamos durante toda nossa vida.
Um tempo depois o médico me chamou para visitar minha mãe, ele me avisou que ela estava desacordada porém estava livre de riscos, aparentemente ela ficou presa de uma forma que se criou um bolsão de ar entre os escombros e isso proporcionou ar suficiente para que ela pudesse resistir por tanto tempo, mesmo que isso pudesse gerar consequências futuras ao pulmão dela. Eu fiquei ali segurando sua mão, olhando para o rosto ferido e envelhecido dela, tentando entender tudo o que estava se passando e pude senti-la pressionar minha mão também, como se estivesse me agradecendo.
Uma enfermeira me chama para alertar que devo deixar minha mãe aos cuidados médicos, pois o horário de visitas havia sido reduzido devido a alta demanda de socorros, eu assenti e me levantei, dei um beijo na testa de minha mãe e passei pela enfermeira, quando ela me chama e diz:
-O senhor é Ricardo Albuquerque, é o filho dela, não é?
-Sim, sou eu. Respondi, me virando novamente para ela.
-Me desculpa incomodar o senhor neste momento tão difícil, mas estamos com uma alta demanda hoje e sem pessoal para manejar a quantidade de pacientes, por isso estamos pedindo certa urgência nos procedimentos. Se não for muito incômodo, o senhor poderia identificar o corpo, para que possa ser liberado o quanto antes? Perguntou-me a jovem moça.
-Me desculpe, acho que não entendi. -Respondi a seco- Que corpo?
-O corpo do homem que estava ao lado de sua mãe, não é o seu pai, senhor Augusto Albuquerque? Infelizmente ele faleceu, então precisamos que um parente possa identificar o corpo para liberação. Concluiu.
Um segundo se tornou uma eternidade. Senti como se estivesse caindo da estratosfera em queda livre a partir daquele momento.
Assenti, e ao chegar no necrotério lá estava ele, o corpo de meu pai cheio de hematomas e ferimentos, a enfermeira disse que aparentemente eles estavam no quarto e ele empurrou a minha mãe no momento em que um barranco demoliu a parede da casa em cima deles e por um milagre minha mãe ficou com a metade superior do corpo preso num vão de escombros que permitiu sua sobrevivência. Eu estava anestesiado. Assinei toda a papelada, dei uma última olhada na minha mãe e fui embora.
Cheguei no hotel próximo a cidade, peguei um quarto, tomei banho, liguei para minha amiga e contei tudo o que aconteceu, menos a parte do meu pai, não queria acreditar. À noite, 3 da manhã, mais uma vez meu celular toca. Eu já sabia por isso nem tinha dormido, passei a noite olhando para ele no canto da cabeceira, esperando esse momento chegar. Imediatamente arrastei o dedo na tela e atendi, a voz da mesma mulher então começou a falar:
-Sua mãe está bem, seu pai também está . Ele não queria ir embora sem ajudar a sua mãe e ela por sua vez não queria ir embora sem se desculpar com você. Naquela noite ele ia te ligar, pedir perdão e solicitar que você fizesse uma visita a eles, mas não deu tempo. A força de vontade dele era tamanha que a espiritualidade permitiu que eu entrasse em contato com você, pois eles sabiam que você viria. Obrigado por ter ajudado, obrigado por ter sido forte por todo esse tempo. E desligou.
Eu coloquei o celular na cabeceira, me deitei novamente, virei para o canto direito da cama e deixei sair. Deixei tudo sair, toda raiva, toda dor, ressentimento, mágoa, tristeza e lágrimas. Chorei como nunca na vida, chorei por toda a minha vida. Chorei pela minha mãe e pelo meu pai, pela criança que eu fui e pelo adulto que eu sou. Gritei, gritei o mais forte que eu pude na calada da noite, no escuro do meu quarto, sozinho. Depois de me liberar, fechei os olhos e sonhei com meu pai, sentado no primeiro degrau da porta da minha antiga casa, o mesmo lugar onde anos atrás ele me deu a maior surra da minha vida, e a última. A noite estava linda, sempre fiquei encantado com quantas estrelas eram possíveis de se observar no céu daquele lugar. Me sentei do seu lado, e ele estendeu a palma da mão novamente, olhando para mim, dessa vez com um amor e compaixão palpáveis de tão densos. Eu peguei sua mão, entrelacei nossos dedos, respirei fundo, olhei no fundo de seus olhos e finalmente tive coragem de dizer: " Pai, eu te perdoo. Pai...eu te amo."


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