Sem Tempo

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O homem andava moribundo pelo meio da avenida a passos ligeiramente firmes, sob o sol escaldante da uma hora da tarde. Normalmente, a este horário, o fluxo de trânsito seria tão intenso nesta via que jamais um pedestre se arriscaria atravessá-la, quanto mais andar em seu âmago. Porém não era um dia normal, ou melhor dizendo, os últimos dias não tinham sido normais.

Ele andava sem rumo naquela reta que parecia infinita. Carros empilhados enfeitavam o cenário caótico e o som ensurdecedor do silêncio da cidade era tenebroso. O homem trajava uma camisa branca, com sangue manchado e seco na altura da costela; calça jeans rasgada e nada nos pés além de calos e machucados. Em sua mão esquerda, havia um gravador, daqueles antigos que ainda utilizavam fita.

A certa altura ele tropeçou em uma pequena cratera e caiu de joelhos. A unha de seu dedão chocou-se contra o chão durante a queda, desprendendo completamente da carne e fazendo sangue verter. Ele não se abalou com isso, se preocupou com o objeto que quase havia deixado cair, todavia o protegeu com a mão. Levantou-se, colocou a corda do gravador em seu pescoço e continuou a caminhar, mancando.

Os olhos castanhos do homem, estavam um pouco opacos, adornados por uma sucinta olheira. Ele suava bastante, mas ao invés de estar vermelho, estava um tanto pálido. Enquanto continuava sua jornada, tateou o gravador a procura do botão de play, até que encontrou e o pressionou.

"Depois de vários dias, já perdi a conta de quantos, finalmente acabou pra mim. Eu queria poder dizer que é um alívio, mas acho que no fim tudo que desejamos é um pouco mais de tempo. Caramba! Como essa droga queima! Já faz duas horas... Enfim, vou continuar meu monólogo... Não apareceu um slide na minha cara, onde um vídeo da minha vida começaria e eu assistiria enquanto dou meu último suspiro. Será que é cedo demais?"

Conforme o áudio gravado prosseguia, ele continuava sua jornada. Apesar de suas retinas estarem danificadas ele pôde avistar um pouco mais a frente duas silhuetas vindo em sua direção.

"O trabalho me consumiu. Alguns diriam que desperdicei minha vida com ele. Mas era o que mantinha minha cabeça atribulada presa a realidade. Talvez se não fosse pelo escritório, esse vislumbre final já tivesse ocorrido antes."

Conforme caminhava naquele asfalto fervendo, era possível ver que a sola de seus pés estava se desprendendo, pouco a pouco, a cada passo. A carne viva já era bem aparente. O sangue do dedão já estava em boa parte coagulado, mesmo com o pouco tempo da ferida.

"Minha vida inteira foi um arrependimento. Mas isso me faz pensar: Será que não somos todos quebrados? Eu sou uma mula de carga de arrependimentos, mas o maior, sem dúvida, foi te deixar ir embora. Dentro de todas essas trevas que eu sempre vivi, você foi meu feixe de luz. Piegas? Eu sei. Mas é a melhor analogia que eu posso fazer no momento... Você não tem ideia como isso formiga e arde... E queima..."

As duas figuras, já mais próximas, puderam ser observadas por ele. Era um homem e uma mulher. Andavam de maneira robótica, emitindo grunhidos, com um olhar vazio e animalesco. Ele estava completamente careca, já ela com boa parte do cabelo comprido faltando. A pele de ambos estava pálida, além de finíssima e coberta de escaras. Ele estava com a mandíbula completamente deslocada para a esquerda e com a parte direita do tórax afundada, bem como o braço direito pendurado. Parecia ter sido atropelado outrora. Já ela vestia uma camiseta rosa que estava toda rasgada e manchada de sangue, enfeitada com quatro facas fincadas em seu peito. O homem ficou com receio ao chegar perto de ambos e tentou se distanciar do caminho deles. Ele ficou pasmo ao ser completamente ignorado, não sabia dizer se foi por sair da reta de ambos ou se era por estar se tornando um deles.

"Bem, agora não importa mais... Não é possível desfazer o que foi feito. Só quero que saiba que esse foi meu maior arrependimento. Depois que você partiu... Depois que eu te deixei partir, eu me perdi completamente. Não pense que a culpa foi sua, porque não foi, foi totalmente minha... Sempre foi minha... Eu ainda sonho com você. Sabia?! Depois que tudo colapsou, eu fiquei todo esse tempo com algumas pessoas que estavam no trabalho. Lembra do Carlos? O zelador, ele mesmo! Tinha a Lara, o Douglas, a Pati e o Martins... Só eu sobrei... Então eu cansei, desisti e resolvi fazer essa última coisa em vida. Queria te dizer que eu passei esse tempo sobrevivendo e não vivendo, e não me refiro ao pós-colapso. Que eu sinto sua falta..."

À medida que a rodovia se expandia para a entrada de outro bairro da cidade, uma multidão de cadáveres ambulantes se revelava. Um se chocava ao outro, todos sem rumo e com o mesmo olhar vazio. Eram membros faltando, carne lacerada e podre, pele comida e um coro fúnebre e amedrontador de grunhidos. O banquete perfeito para os vermes e moscas.

O homem engoliu a seco aquela visão assustadora e se enviesou pelo canto das construções, desligou seu gravador e foi se batendo eventualmente entre um e outro daqueles resquícios de seres humanos.

Eles o ignoravam completamente, fazendo-o relembrar que antes não era tão diferente.

Assim que o coro foi diminuindo de som e o homem foi se afastando, restando apenas uma ou outra carcaça perambulando, ele religou o gravador.

"Lembra no baile da sua formatura? Quando te pedi em noivado? Quando te pedi pra morar comigo?! Perguntas bestas, obviamente que você se lembra. A quem eu quero enganar utilizando de diálogos tão desumanizados? Até isso soou falso! Hahaha! A vida de todos deve ser falsa e cheia dessas coisas sem sentido. Ou é só minha cabeça mesmo... Divagação pura. A questão é que eu quero te pedir perdão. De verdade dessa vez. É uma droga o que está acontecendo nesse exato momento, sequer sei se você está viva ou não. Mas se tiver, essa é a última coisa que preciso fazer. Eu sou um compilado de merda e não te merecia. Saiba que se um dia tudo isso acabar, te desejo toda a felicidade. Me perdoe..." A fita chiou por alguns segundos e desligou.

Ele estava com olheiras profundas e, pela cara franzida, tentou despejar alguma lágrima sem sucesso. Seus lábios rachados, a desorientação e a fome crescente que sentia eram um sinal muito claro de desidratação severa, sintoma esse provocado pela doença que assolou aquele lugar.

Com dificuldade ele chegou a uma rua sem saída, e sem outros seres iguais ao que ele estava se tornando, olhando fixamente para um sobrado que estava no fim. No meio do caminho ele caiu novamente, mas dessa vez de fraqueza. Tentou por pelo menos três vezes se levantar, mas suas pernas não conseguiam mais sustentá-lo. Mesmo desidratado, ele começou a espumar pela boca, todavia não desistiu, passou a se arrastar pela rua rumo à casa no final dela. Havia uma escadinha de madeira antes de se alcançar a porta, e lá foi ele se debruçando degrau por degrau, perdendo força a cada movimento, até que no último ele teve vários espasmos e convulsionou. No entanto, enquanto não dava seu último suspiro, ele conseguiu tirar o gravador preso em seu pescoço e o deixar perto da porta, que, com todo aquele barulho na madeira, se abriu.

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