Viro a página com cuidado, depositando o bilhete de entrada no Jardim Tropical Monte Palace entre as páginas imperfeitas da segunda edição de Entre Mar e Rio, de Ribeiro Couto. Uma nostalgia inexplicável invade-me quando o fecho, como sempre acontece com os livros que a tia me deixou ao falecer. São dos anos 60, com as capas de papel manchadas pela humidade, as páginas de diferentes tamanhos unidas por cordéis ou cola generosa, e anotações em letra miúda entre salpicos de café. Contudo, apesar de toscos, são-me todos mais queridos do que qualquer outro que tenha adquirido ao longo da vida.
Coloco-o delicadamente sobre a mesinha com motivos de azulejos, reclinando-me na poltrona depois de recolher a minha chávena fumegante. Um pavão atravessa os canteiros do jardim, do lado de fora do Greenhouse Coffee Roaster, enquanto saboreio o travo ácido do líquido que me desce pela garganta, aquecendo-me a alma.
Natureza, café e livros eram a combinação favorita da minha tia. E são agora a minha.
— A tua tarte, Nat.
Um prato branco com um triângulo achocolatado, de crosta estaladiça decorada com uma camada branca de açúcar e o interior mal cozido, a perder a consistência na direção do garfo metálico, aterram a uma distância segura do meu livro. Subo o olhar para Nuno, o empregado com quem travei amizade pela minha assiduidade neste espaço, e sorrio.
— Obrigada.
Ele sorri de volta e regressa para trás do balcão de azulejos verdes, para junto da máquina de café vintage que os empregados utilizam para preparar o café.
Gonçalo Gouveia, o dono do espaço, tinha-me demonstrado o processo em várias ocasiões, partilhando com entusiasmo a história por detrás da estufa envidraçada na entrada do Jardim Tropical, reconvertida num espaçoso e aconchegante café de decoração moderna e cores vibrantes, rodeado de plantas em todas as direções. A sua história de tentativa e erro na busca do melhor sabor de café, combinando diferentes variedades de grãos, processos de torra e extração e qualidades de água é absolutamente inspiradora. Ter a oportunidade de o ouvir falar sobre o ciclo de vida das matérias primas, até que se tornem uma deliciosa chávena de café ou um apetitoso doce caseiro cria uma enorme sensação de empatia no cliente, especialmente os regulares, que passam a ver com novos olhos este estabelecimento que tanto adoram.
Nesta hora da manhã, a estufa cheira a grãos torrados, caramelo e flores.
Os meus olhos viajam pelo jardim, o palato assaltado pela combinação explosiva do bolo caseiro e do café forte, as mãos entretidas a pescar o livro momentaneamente esquecido entre a loiça. Porém, sou incapaz de retomar a leitura, ao ter a minha atenção cativa da conversa animada que decorre na mesa atrás de mim.
— E que tal o empregado? — pergunta uma voz feminina, o tom sugestivo de intenções carnais.
Risinhos atingem os meus ouvidos mais depressa que as conversas dos restantes clientes.
— Demasiado magro. Não tem ombros. Parece demasiado dócil e não deve ter o tamanho certo, se é que me entendem — desdenhou outra, terminando a torrada amanteigada.
Espio sobre o ombro, encontrando o grupo de mulheres a avaliar o Nuno como quem analisa a carne no talho. Depois endireito-me, trocando um olhar com ele quando dá a volta à estufa para atender a clientela na esplanada. Tinha ouvido tudo e estava tão ou mais incomodado que eu.
As turistas, algures do continente, continuaram a conversa, discorrendo sobre as qualidades perfeitas de um homem. Alto, forte, musculado e abastado, claro. Atencioso, mas não demasiado complacente. Atrevido e desafiante, mas não abusador. Que trate bem a mãe mas que não viva nas suas saias. Pontual e capaz de chorar, mas sem ser lamechas e carente. Que só seja ciumento nas situações certas. Que seja romântico mas viril.
Termino o pequeno almoço, pago e recolho o livro.
— Experimentem a biblioteca — sugiro ao sair, o meu timbre grave provavelmente a acentuar o sotaque madeirense.
Elas fitam-me, curiosas, o susto estampado na face.
— Com tantas exigências, só devem conseguir encontrar um homem assim nas páginas de um livro — sorrio, insincera. — Desfrutem da ilha.
Nuno ri-se na minha direção quando saio, agradecendo. Eu aceno antes de adentrar o jardim, em busca do próximo local para acabar a minha leitura.
699 palavras
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Na Estufa do Jardim ✔
Short Story🥈 ᴄᴏɴᴛᴏ ᴠᴇɴᴄᴇᴅᴏʀ ᴅᴏ ꜱᴇɢᴜɴᴅᴏ ʟᴜɢᴀʀ ɴᴏ ᴅᴇꜱᴀꜰɪᴏ ɪʀɪꜱʜ ᴄᴏꜰꜰᴇᴇ Natália saiu à sua falecida tia: adora a combinação da natureza, livros antigos e café. Todos os fins de semana passa a manhã a ler no café de sempre, com as plantas do Jardim Tropical a est...