Seus olhos se fecharam com mais vigor quando foram violentados por um feixe de luz solar.
A luz abriu uma estreita trilha pelas grossas cortinas negras, certamente a fim de incomodar a pobre criatura que tanto a desprezava. As cobertas se moveram de forma sutil quando um braço pálido emergiu do calor dos lençóis a fim de expulsar aquele feixe solar indesejado. Os cabelos azuis desbotados se espalhavam abstratamente pelo travesseiro, tal obra foi arruinada quando Sally levantou o rosto descarnado para observar seu reflexo no espelho ao lado do mar de cobertas. Estava um completo caos. A pele pálida junto com as enormes olheiras escuras faziam-na parecer perfeitamente que a vida já havia deixado seu corpo há um tempo, pelo menos era dessa forma que se sentia. A visão lhe deixou um gosto amargo na boca, então cerrou os olhos e voltou a adentrar em sua mente, não havia nada fora dela que valesse sua energia, que já era quase inexistente. Talvez nao fosse isso... talvez em seu âmago sentisse que nao era merecedora de nada, nao merecia apreciar o sabor da vida, nem contempla-la com aqueles seus malditos olhos castanhos, tão escuros e sem vida. Quando será que tudo se tornou tão... cinza? Talvez as coisas sempre foram assim, o tempo tinha se juntado em uma coisa só, uma grande cúpula de água morna, confortável demais. Não conseguia se lembrar de como respirar, então simplesmente afundava no mar de incerteza que era sua própria cabeça, deixando se levar pela correnteza. Quando voltou a abrir os olhos, sentiu-se tonta e suada, nao tinha certeza de quanto tempo se passara, não importava de qualquer maneira.
Sentiu o irritante lembrete que ainda havia algum resquício de vida naquela carcaça que chamava de corpo. A fome havia começado a devorar suas entranhas, não sentia vontade alguma de comer, mas a dor que sentiu era incômoda demais para ser ignorada. Soltou um pesaroso suspiro antes de suas pernas escorrerem para o chão, seus braços foram de encontro á cabeceira da cama em busca de apoio, se não o encontrasse certamente cairia, e se caísse nao se levantaria tão cedo. Seu corpo pesava tanto que cada passo fazia seus pés doerem e a cabeça girar. Via vultos de coisas que talvez fossem quadros, móveis ou qualquer outra coisa em seu entorno, seus olhos mantinham-se fixados no chão á sua frente, apenas abertos o suficiente para vislumbrar seu pé vindo de encontro ao chão de vez em quando, e depois outro, e outro. O mais longe que conseguiu chegar foi na bancada da cozinha, a visão da geladeira fez seu estômago se embrulhar. Sentiu-se extremamente cansada de repente, e viu o chão vindo ao seus encontro. Antes que percebesse, lágrimas chegaram sem ser convidadas, correndo por suas bochechas, molhando a camisa. Abraçou os joelhos, sua cabeça pesava, seus olhos pesavam, sua vida pesava. O ar lhe faltava, sentia que nem isso merecia, seu coração pulsava na cabeça, esbofeteando estridentemente sua têmpora. Unhas irregulares e pontudas abriam espaço entre tecido e pele, indo de encontro a carne rosada dos braços marcados de dores antigas; um fio de seda vermelha correu quando uma fenda se abriu no corte por sarar que havia na base do pulso. Os olhos de Sally se fixaram rapidamente naquela linda linha escarlate quando sentiu uma gota gelada pingar em sua coxa. As lágrimas cessaram por um instante e o ar voltou aos pulmões, as unhas retomaram o trabalho da crise passada, abrindo novamente a fenda vermelha em seus pulso, que pingava cada vez mais seda. Sua mão era uma bagunça de pele e sangue, e seu braço era todo escarlate. Toda a cena era estranhamente bela, a forma como seus olhos suavizam de acordo a seda escorre para o chão, a calma que toma o lugar que antes residia a euforia. Observou com atenção até que aos poucos o sangue se cansasse.
Respirou por um tempo e por fim conseguiu se levantar, abriu a geladeira, encontrando apenas latas de energético e uma cebola que estendia longos dedos amarronzados por entre uma extremidade de seu compartimento. Pegou uma lata da bebida, nem aquilo tinha o mesmo sabor que um dia tivera, agora parecia apenas... água. Abriu a dispensa e pegou um biscoito de sal, o consumindo lentamente. Se escorou na mesa da cozinha com a lata na mão, ponderando as opções que tinha em mente para a noite: podia abrir uma fenda do início do antebraço até o fim do pulso enquanto escutava Mitski, ou podia ir na varanda observar a lua, ambas opções eram demasiadas tentadoras. Enquanto pensava, um raio lunar entrou com uma lufada do vento, que agitou as cortinas de poliéster brancas, embebendo o lugar num brilho fantasmagórico e magnifico. Então decidiu que poderia morrer amanhã, a lua pareceu-lhe levemente mais atrativa naquele instante.
Arrastou o corpo até a beira da sacada, tentando ao máximo apreciar a bebida que tinha em mãos e falhando. A única coisa que a separava do asfalto era um passo e 37 andares. Quando desistiu de tirar alguma sensação da cafeína, a atirou no abismo de escuridão que se abria a sua frente, e sem que percebesse sua mente divagava novamente. Uma ideia atravessou sua mente, tão certeira como uma flecha. Seria tão fácil se ela só... parasse. Parasse de buscar qualquer sentido no erro que era sua própria existência, parasse de tentar ser qualquer coisa que fosse, parasse de ocupar espaço nesse universo. Então, depois de anos lutando contra tais pensamentos, nunca chegava á lugar nenhum, mas ali, diante daquele furo de luz que o céu deixava escapar, sentia-se finalmente leve. Só ali pode perceber o quão exausta estava, e quanto tempo passara sofrendo em vão, afinal, a resposta estava ali, a um passo de distância. Seus olhos se fecharam, e por um instante se permitiu simplesmente sentir a brisa que precede a alvorada despentear seus cabelos, levando toda a angústia com ela. Seus pés se moveram de encontro á beira da luz. Seu corpo enfim descansou, erguendo os braços, oferecendo um abraço para aquela sensação de liberdade que invadia seu corpo.
E então, tudo se acalmou. Sua mente enfim encontrou a paz que procurava.