O ar estava frio.
Não gelado, como as manhãs nubladas e das baixas temperaturas de Nova Primavera antes dos primeiros raios de sol.
Frio como o silêncio após uma pergunta. Frio como o distanciamento. A negligência. A solidão.
Frio, seco, árido, infértil. Sem calor. Sem humanidade. Sem aquela sensação de que alguém estava ali, com ele. Por ele.
Ramiro infelizmente já conhecia essa sensação. Desde criança, aquele frio lhe rodeava, às vezes como uma sombra no canto dos olhos, mas que quando virava, não via nada. Às vezes, como a percepção de que as pessoas ao seu redor não lhe entendiam como ser humano. Ou quando perguntava a si mesmo o que o tornava tão diferente de Caio, aos olhos do patrão.
Ele era um bom menino. Forte. Corajoso. Curioso. Obediente. Ah, sim, tão obediente que chegava a doer. Sempre pensou mais nos outros do que em si; era o homem da casa, tinha que ser corajoso, trabalhador e abdicar de muitas coisas para continuar sobrevivendo.
Engraçado como esses adjetivos nunca lhe foram ditos por outras pessoas. Afinal, o que dizer para alguém que sempre foi invisível?
Apertou o tecido encharcado de suor contra o peito que doía. O ar não entrava, apesar de tentar muito. As coisas ao redor estavam instáveis, rodopiavam enquanto a visão ficava curta à medida que a taquicardia lhe subia a garganta e a trancava. O medo corria em suas veias, igual metal gelado.
Ramiro passou as mãos suadas pela barba crescida, como se tivesse ali para esconder seu rosto marcado de conflito e perturbação. O coração acelerava, batia contra a caixa torácica como se fosse explodir.
Ele não queria mais seguir aquela vida. Ele não queria mais ser o capanga, o violento, o obediente, o cachorro fiel e que nunca questionava.
Ele aprendeu a questionar. A perguntar. E era bom.
Ele aprendeu a amar. A conversar, a rir, a ser aceito. A abraçar. Apertar. Ah, os apertões. Ele aprendeu a ler, a escrever seu nome.
Seu nome que tinha tantas letras legais e sílabas que adorava soletrar.
Ele aprendeu tudo isso quando apre deu a ouvir seu Kevinho.
Mas o Kevinho não estava ali, não mais. E ele tinha que correr atrás do que seu namorado tinha pedido, ou ia perdê-lo para sempre.
Ramiro escorregou da cama até o chão, apoiando as costas pesadas contra a cômoda pequena. A luz do quarto estava levemente bronzeada, e aquele tom de dourado sempre lh fazia lembrar dos cabelos de Kevinho. Ruivo. Cobre. Cor de moeda, como costumava comparar. Cor de terra. Cor de vida.
Ele tentou focar nisso, na poeira dançando pelas frestas de luz, mas aquilo não parecia lhe acalmar como antes. Aqueles ataques de ansiedade estavam mais frequentes ultimamente.
Com a exaustão daquela angústia existencial, o moreno se virou com dificuldade em direção a janela, tentando encontrar a sua querida ouvinte: Dona Lua.
Dona Lua era sua confidente desde criança. Estava sempre lá, lhe perseguindo enquanto ele corria pelas estradas com os pés descalços ou quando apertava o acelerador do carro quando adulto. Ele ouviu falar que aquilo era ciência, algo a ver com a rotação da Terra, mas, pra ele, era magia.
Ramiro uniu as mãos e pediu pra Dona Lua lhe ouvir uma última vez. Lhe dar forças. Coragem.
Mas, como sempre, Dona Lua ficou em silêncio, contemplando a sua pele negra e que agora a brilhava com suor.
"Você só precisa ouvir a você mesmo", uma voz semelhante a sua sussurrou.
O sotaque era diferente. Era neutro. Rebuscado, até. Dicção de professor.
Ramiro se virou para trás, assustado, procurando a arma no coldre em reflexo. Seus olhos castanhos se arregalaram ao ver sua imagem e semelhança a sua frente.
Era Ramiro, mas não era Ramiro.
Usava uma roupa clara, bem passada e perfumada. Ele sorria triste, mas tinha olhos gentis.
"Q... Quem é ocê?", Ramiro perguntou, as mãos trêmulas e fazendo a arma balançar. "Ocê... Ocê sou eu?"
O outro homem riu de lado, erguendo as palmas como sinal de trégua e se aproximando.
"Sou sim, Ramiro. Sou sim." disse devagar, abaixando a sua arma sem tirar os olhos gentis dos seus, tão assustados. "Sou você de outro jeito."
"Outro jeito? Que jeito? Isso aqui deve ser pegadinha! Tô ficando doido!"
"Ei, ei. Não. Não é isso." o visitante inesperado negou, sentando em sua frente, no chão empoeirado do quartinho.
Uma quietude se instalou. Ramiro se remexeu, mas por algum motivo não sentia mais medo. Tentou raciocinar o que via, quem era aquele homem igual a ele e por que se sentia tão à vontade ao seu lado.
Esperou que ele falasse algo. Que explicasse algo. Mas Amaury continuou o observando, pleno e tranquilo. Os segundos foram passeando como o bater de asas de um sabiá, e, quando perceberam, as batidas do coração estavam sincronizadas.
Tam tam. Tam tam.
"Tá respirando melhor agora, meu amigo?" perguntou Amaury. Ramiro só assentiu. O ator envolveu as mãos nas do capanga, apertando-as como as de uma mãe que guiava o filho pelo supermercado. "É um prazer te ver, Ramiro."
"Como ocê me conhece? Você é parente meu?"
"Ah, não. Mas sou seu amigo. Isso não vai fazer muito sentido, mas ouça o que vou te dizer..." iniciou Amaury, procurando as íris de Ramiro e induzindo-o a lhe encarar com concentração.
"Você é gentil. Muito. Você não sabe, mas você me mantém vivo todos os dias e é tão doloroso, mas tão gratificante ao mesmo tempo estar com você, Ramiro", começou o ator, com os olhos marejados e emocionados.
"Eu sinto muito por tudo que fizeram a você. Você era só uma criança, um menino corajoso e que fazia de tudo para sobreviver e manter seus sonhos vivos. Você é inteligente. Tão inteligente! Lembra quando você aprendeu a dirigir só vendo os outros capangas?" questionou, fazendo Ramiro dar uma leve risada.
"Lembra do sorriso da sua mãe quando você ajudou a pagar a conta de luz? Ou quando você salvou aquele gatinho que tava no meio da estrada, alimentou ele por duas semanas até conseguir encontrar um lar pra ele?"
Ramiro quase não lembrava. Sua infância tinha sido tão ruim. Tão exigente. Mas enquanto o homem narrava, ele começava a resgatar todas aquelas memórias.
Da adrenalina de dirigir. De ajudar sua mãe. De segurar em mãos aquele gato indefeso, molhado da chuva, faminto e sem ninguém para defendê-lo. Igual a ele.
"Eu sei que você não fez nada porque queria. Era obrigado. Eu sei quantas vezes te chamaram de jumento e te humilharam, te fizeram acreditar que você não era ninguém e que fora dessa fazenda, iria morrer. Todos os abusos, o medo que você sentia. Eu sei, Ramiro. Eu sei."
Como ele poderia saber?
O homem que falava parecia estudado. Falava tão bem. Parecia conhecer tudo. Como saberia ser como ele?
"Você é carinhoso. Tem tanto amor e afeto aí dentro desse seu coração, meu amigo. Tem tanto sonho, tanta garra. Tanta liberdade. Você pensa que não merece tanta sorte em ter o Kevinho, mas você merece sim. Olha o quanto você cresceu por causa dessa amizade. Desse amor. Olha o que você tá tentando fazer pra provar esse amor e sair dessa vida."
"Eu preciso fazer mais. Eu... Eu fiz tanta coisa errada."
Antes que Ramiro pudesse soluçar o choro que estava trancafiado em sua garganta, Amaury prosseguiu. Dessa vez, com um tom de voz um pouco mais grosso. Irritado, talvez. Indignado.
"Você não precisa de nada disso pra provar que é bom. Ouviu? Você é bom. Você é valioso. Você é caridoso. Tem um universo de coisas boas aí contigo e eu queria muito que toda essa jornada de descoberta fosse guiada apenas por conscientização, afeto, amor e respeito. Humanidade. Eu queria que você fosse abraçado, que você ouvisse todos os pedidos de desculpas de todos que falharam com você. De todos que te invisibilizaram e agrediram. Queria que você não precisasse passar por tudo isso só pra ser visto como um ser humano. Porque você já é mais humano do que qualquer outro, meu amigo. Você é o puro significado de ser humano."
Ramiro chorou. Ouvir aquelas palavras vindo de alguém que tinha sua cara era estranho, mas, por alguma razão, muito familiar. Era como ouvir a si mesmo. Ou um amigo, como o homem lhe chamava. Um protetor.
Ramiro percebeu que o frio tinha passado. Não era mais vazio, sem vida, sem calor. Mesmo chorando como uma criança que contou pra mãe que tem medo de escuro, ele se sentia leve. Acolhido.
"As pessoas não me veem assim."
"Meu amigo. Te prometo que muitas pessoas te veem exatamente assim. Torcem por você. Brigam por você. Lutam para que você possa viver e ser quem você quer ser."
"Onde encontro essa gente? Parece um sonho, moço", duvidou Ramiro.
"O mundo não é só Nova Primavera. Aqui é um pedacinho do mundo que você vai conhecer. É um pedaço que foi cruel, doloroso e muito injusto com você. Mas não é o mundo todo."
Aquilo fazia sentido. Ramiro lembrava de quantas vezes seu Kevinho tentava lhe convencer a sair daquela cidade, a fugir, casar, viver o amor deles em outro lugar. Um lugar que era possível amar outro macho. Um lugar onde ele podia ter sua terrinha, seus gados, sua vidinha.
"É de lá que ocê vem?" perguntou o capataz.
"É, sim." Amaury levantou uma das mãos e pousou sobre o peito de Ramiro. "Fica bem aqui."
Ramiro não entendeu. Olhou para si, para aquele toque quente e acalentador. Vinha de onde? Do peito apertado dele?
Do coração angustiado?
Olhou pro ator com dúvida.
"Não tô entendendo".
"Você vai entender um dia" Amaury garantiu, se debruçando e abrindo os braços em torno de Ramiro.
Abraçar aquele que ele interpretava era como abraçar a si mesmo. Era acolher aquela criança negligenciada e abandonada. Era recolher todos os cacos que a vida tinham causado, e mesmo com uma armadura tão forte, Ramiro ainda era frágil. Vulnerável.
Como aquele gatinho que ele resgatou.
E Amaury, naquele momento, riu, pensando que ele interpretava Ramiro naquela cena. Resgatando-o, acolhendo, alimentando, protegendo.
Amaury queria salvar Ramiro de todas as dores e violências. Do mundo. Da crueldade. Da incompreensão.
Queria mostrar pra ele seu mundo. O mundo onde ele era amado, visto por milhares de pessoas que torciam pela sua jornada e se indignavam, se emocionavam e encontravam nele uma humanidade infinita.
Ramiro e Amaury, apesar de tudo, eram duas faces da mesma moeda. Criador e criatura. Mas nenhum tinha um papel fixo: eram criador e criatura um do outro.
Ali, Amaury lembrava de uma citação de Dostoievski, que se repetia em sua cabeça desde que lera o maldito roteiro."Não será preferível corrigir, recuperar e educar um ser humano que cortar-lhe a cabeça?"
VOCÊ ESTÁ LENDO
Criador e Criatura
Short StoryRamiro, durante um ataque de pânico, recebe a visita de Amaury Lorenzo.