O sol da manhã reflete na parede de Carine, que ainda sonolenta, resiste ao instinto de permanecer dormindo e se levanta para abrir ainda mais a cortina branca – quase inútil - da única janela de seu quarto. Nesse momento, ela sabia que realmente precisaria começar o dia. "Mais um." pensou, seguido de um leve suspiro. Arrumou a cama, pois sabia que se continuasse daquela forma o colchão falaria mais alto do que a razão, e a razão é necessária para colocar comida na mesa e pagar o aluguel. Seguiu para a sala e caminhou até a quina em que a vitrola se encontra e analisou o disco que seria a trilha-sonora de sua vida dos próximos trinta minutos. Elis. Comprado na feira do lavradio, em um sábado recheado de cachaça com os amigos. Na hora, pareceu uma escolha inteligente, mas ao observar as manchas e pequenas falhas nas laterais – devido ao uso do antigo dono, é claro – se perguntou se os 90 reais que pagou não poderiam ser 40. Deixou para trás, já que não poderia voltar ao vendedor exigindo justiça pela qualidade do material, e demorou para escolher o lado que tocaria primeiro - e acabou começando pelo A, como todas as outras vezes.
Todas as janelas abertas e as plantas regadas, não existia um canto daquele apartamento que não estivesse recebendo os nutrientes necessários. A não ser por ela, que pulou o café da manhã para não perder o ônibus que passa todos os dias no mesmo horário, 6:40, e mesmo assim ainda se enrola para sair de casa a tempo. É claro que existe a opção de acordar mais cedo, mas ela não perderia a rotina por nada, mesmo que isso cause alguns problemas de atraso. No ônibus, penteia os cabelos curtos com os dedos, mesmo que isso não mude em nada em seu visual, gosta de pensar que há uma imagem boa sendo passada ao colocar as mechas atrás das orelhas. Confere as chaves, o bilhete da passagem, a identidade, o celular, a halls vermelha que nunca foi aberta e parece até um pouco derretida. Confere de novo. Se pergunta se trancou a porta ao sair. Se pergunta se deveria fazer uma chave extra, só por segurança. Pergunta tanto, que não responde nada.
Trabalhar como professora nunca foi seu sonho, mas as crianças eram, e essa foi a forma mais próxima de ser mãe de aproximadamente 100 filhos, se juntar todas as turmas e excluir alguns aqui e ali. Se acha jovem demais para administrar uma família, mas controla todos os estudantes com maestria, mesmo com alguns gritos necessários. Apesar dos conflitos, ama a sala de aula, e ama mais ainda cada "tia" recebido. A pedagogia para ela é mais do que ensinar e aprender, é prezar.
- Profe, a senhora tem namorado? - Questionou uma das meninas que se sentava na frente.
Caramba, pergunta proibida.
- Não sei se algum me aguentaria. - Argumentou, arrancando algumas risadas da classe. Todavia, era uma realidade disfarçada de piada. Nunca saiu com alguém por mais de 3 meses e se sente um completo fracasso na arte da socialização. Seu grupo de amigos nunca mudou desde o primeiro período da faculdade, então conhecer pessoas novas é sempre um desafio. Já tentou de tudo: Tinder, Bumble, Happn, Tarot, algumas religiões. Sem sucesso. O romance está em todos os lugares, menos com ela.
Ao final do turno, se despede dos colegas de profissão e segue o rumo de volta para casa, dessa vez com fones de ouvido para tentar se esquivar de pensar na pergunta que foi feita mais cedo. Namorado. Em algum lugar por aí deve ter alguém, certo? Por que essa dificuldade toda em um planeta tão grande? Só no Rio de Janeiro são 7 milhões de pessoas, se tirar as mulheres, são 3,5. Se tirar os menores de idade e os idosos são 2,5. Se tirar os casados/namorados/em situação complicada, ainda temos 1 milhão. Um milhão de homens e nenhum parece interessado nessa mulherzinha complicada. O fone de ouvido não adiantou, a questão parece se triplicar com a MPB triste tocando no volume máximo. Tenta se enganar de que não precisa de homem pra ser feliz. Mentirosa. Quer viver um romance de filme, livro, pintura, teatro. Romance daqueles de torcer pelo casal tanto quanto para o Brasil na copa do mundo. Quer chorar, rir e gozar. Nunca julgou o sexo casual, já que era o máximo que poderia receber dos caras de bigode dos bares do centro. Porém o fato de não ter tido o carinho pós sexo que apenas um relacionamento sério é capaz de fornecer faz sua espinha arrepiar.
Nunca se achou feia, mas achava seus dentes amarelos e seu pé chato demais. Inclusive, sempre recebeu elogios sobre sua beleza natural. O que não adiantou muita coisa, já que no último ano realizou quatro procedimentos estéticos para se sentir menos básica, que era uma reclamação recorrente da própria mãe. Mesmo assim, não era percebida nos lugares e começou a se sexualizar mais e mais, até não restar mais Carine. Virou uma caricatura de súcubo e permaneceu assim até se esquecer de quem foi. Pelo menos, ainda tinha seus discos e plantas. Quem sabe isso quer dizer amor?
Acendeu a luz amarela assim que pisou em casa e se deitou no sofá rasgado que está há meses para ser trocado por um novo. Sentiu empatia pelo sofá por alguns segundos, mas não deixa de achá-lo feio. Abre o Instagram. Fecha. Abre o Whatsapp. Fecha. Abre o Twitter. Desinstala assim que vê a primeira publicação. Instala de novo. Se enrola na coberta com cheiro de gato e se lembra de colocar a ração para o felino que esquece que tem dona.
- Eu sou meio miserável, não acha? - Pergunta para ele, como se esperasse algo em troca.
Passa um café, mesmo não querendo ficar acordada, só para ter o cheiro impregnado em cada cômodo e ter a sensação de conforto pelo menos uma vez na vida. Lava as louças, toma um banho demorado e quente, como se fosse o próprio café. Escreve um bilhete. Se mata antes de conseguir dormir. O gato mia em resposta.