Hoje eu preciso ouvir qualquer palavra tua
Qualquer frase exagerada que me faça sentir alegria
Em estar vivo
Só Hoje - Jota Quest
19 de Novembro de 2017A noite era uma manta escura estendida sobre o mundo, e o carro deslizava, quieto, pela estrada. Na cabine, um silêncio confortável enlaçava meus pais como se o amor entre eles fosse uma verdade antiga, um ritual. A estrada corria monótona, mas ao nosso redor havia um pacto de cumplicidade. As luzes dos faróis recortavam o asfalto à frente, e a música que brotava dos alto-falantes, preenchia o ar com uma doçura nostálgica, como se aquele instante fosse eterno, mas também frágil. Meus pais trocavam olhares, e eu, observando de um ângulo enviesado no banco de trás, ansiava, de forma inexplicável, por um futuro em que alguém também me olhasse assim.
— Mãe... — minha voz cortou o ar, como se algo profundo dentro de mim fosse forçado a emergir, sufocado há muito tempo. — Você sempre soube o que queria na vida? Desde o começo, sabia que ia se casar com o papai? Ou houve momentos em que se sentiu perdida?
A pergunta veio com o sabor de uma confissão, não tanto uma curiosidade, mas uma necessidade de saber se a incerteza era permitida, se eu, na minha juventude confusa, poderia me perder sem ser condenada por isso. Mordia a unha do indicador, um hábito infantil, e me perguntava se era frágil demais, insegura demais para este mundo que se espera tanto de nós.
Minha mãe, por um instante, parecia capturar minha angústia em seu olhar. Havia nela um misto de ternura e uma sabedoria que parecia ter sido adquirida com o passar dos anos, como se o tempo a tivesse lapidado.
— Minha querida... — ela começou, com uma voz que era como um murmúrio na noite. — A vida nunca nos dá certezas. Muitas vezes, eu também me senti perdida. Mas aprendi que não há vergonha em se perder. Pelo contrário. Às vezes, é se perder que nos faz encontrar. Eu não sabia desde o início que ficaria com seu pai, mas aprendi a caminhar com o desconhecido, a abraçar a vida com suas incertezas. O importante é seguir, sempre com amor.
O amor. Ele parecia a resposta para tudo, mas, para mim, havia um vazio, um medo que eu não sabia nomear. Talvez fosse a impossibilidade de ser amada da forma como eu imaginava, talvez fosse o temor de não ser suficiente.
— E se eu não for capaz de amar, como você ama o meu pai? — soltei, sem rodeios, as palavras ecoando pelo carro. — E se eu... — hesitei, sentindo um nó formar-se em minha garganta — não sentir o mesmo por garotos como você sente por ele? Vocês ainda me amariam?
O silêncio que seguiu foi esmagador. O carro seguia seu curso, mas dentro de mim, tudo parecia estar suspenso. Minhas mãos tremiam levemente, e eu observei o reflexo dos meus pais se entre olhando, um olhar de surpresa mal disfarçada, talvez de uma pergunta que eles não sabiam se estavam prontos para responder. Senti um frio no estômago. O que eu tinha dito? O que eu tinha aberto?
E então o destino — ou talvez o acaso — interveio.
Meu pai virou-se para frente, os olhos subitamente fixos em algo à frente na estrada. Um caminhão se aproximava, e os faróis intensos invadiam o interior do carro, tornando tudo mais brilhante e confuso. O tempo começou a se desfazer em fragmentos. Lembro-me de ouvir meu pai murmurar algo inaudível, de sentir a urgência nos movimentos dele, o desespero silencioso. O caminhão estava perto demais. Não havia saída.
O impacto veio como uma onda de choque, brutal e inevitável. Tudo começou a girar, a se distorcer. O carro foi lançado para fora da pista, e a gravidade deixou de existir. Estávamos caindo, e eu sentia meu corpo sendo jogado de um lado para o outro. O som do metal se retorcendo preenchia o espaço, e meu grito, preso na garganta, era impotente.
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O Que Resta dos Silêncios
RomanceApós um trágico acidente de carro que tirou a vida de seus pais, Alicia viu-se forçada a abandonar seu antigo lar, e mudar-se para a casa de sua tia em uma pacata cidade do interior. Nesse novo ambiente, marcado pelo silêncio e pela ausência daquele...