Prólogo

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Celese, ao contrário de sua reputação como o reino das flores, não era o paraíso que muitos imaginavam à distância. A família real, apesar da fachada de dignidade e bondade, revelava rachaduras assim que se aproximava.

Há dezoito anos, o reino sucumbiu temporariamente, um período breve que bastou para ceifar a vida da rainha Orianna e deixar o coração do rei Varrock dilacerado. No mesmo ataque, perderam também sua única filha, a princesa Kalista. Esse desastre deixou uma marca permanente nos corações de todos os habitantes de Celese, mergulhando-os em um luto profundo pelo destino do reino.

Desde então, o mundo mudou irrevogavelmente, mesmo com a minha sobrevivência. Mesmo enquanto eu permanecia oculta em Ivydale, o reino do sol. Mesmo mantendo esse segredo enterrado por dezoito anos. Nada mais seria como antes.

Nunca mais.

Não que eu almejasse a vida de princesa, com todas as suas regalias e viver no palácio. A monotonia da minha vida em Ivydale era o meu refúgio, especialmente na pequena cidade de Windy, onde podia passar despercebida.

No entanto, tudo estava prestes a mudar. Aos dezenove anos, todo jovem era obrigado a se inscrever no Blade & Blood, o mais célebre colégio de magia da história. Nem todos eram admitidos, é claro, sendo redirecionados para outras instituições. Mas eu sabia que seria chamada.

Não importava que estivesse vivendo em um canto remoto do mundo, com um homem chamado Leofric, que carecia de qualquer habilidade para criar uma garota. O colégio estava ciente. Apenas os sangues mais poderosos eram selecionados para o Blade & Blood. Seria ingênuo pensar que eu seria poupada quando sangue puramente real corria em minhas veias, o mais puro dos poderes.

E, no entanto, uma parte de mim ansiava por um milagre. Para permanecer bem longe daquele lugar, repleto de jovens poderosos e perigosos que poderiam desmascarar minha farsa num piscar de olhos.

O Colégio Blade and Blood era o sonho de qualquer jovem com o mínimo de poderes em seu sangue. Era um lugar onde podiam aprender a dominar e aprimorar seus dons, convivendo em harmonia com outros de sua espécie, enquanto se aprofundavam nos mistérios do Mundo Superior.

Existia, de fato, uma sociedade oculta que coexistia entre os humanos. Esta sociedade incluía a realeza mágica e cortes formadas pelos indivíduos mais poderosos de todo o mundo, além de locais protegidos por encantamentos mágicos, inacessíveis aos olhos humanos. Este complexo e discreto sistema funcionava à sombra, completamente alheio à humanidade.

O Blade and Blood representava a porta de entrada para o vasto universo da magia. Apenas os alunos mais promissores e talentosos emergiam de suas paredes com uma carreira meticulosamente esculpida. Portanto, o ingresso neste colégio era uma façanha extremamente desafiadora, reservada a uma minoria sortuda entre os seres dotados de habilidades mágicas.

Ainda que eu soubesse que muitos jovens lá dentro estariam dispostos a matar pelo poder de ser reconhecido como digno de honra, estudar naquele lugar nunca havia sido meu sonho. Pelo contrário, aproximava-se mais dos meus pesadelos. Por isso, parte de mim torcia para que um milagre acontecesse. Para que eu passasse bem longe daquele lugar, com jovens poderosos e perigosos que poderiam expor toda a minha farsa em um piscar de olhos.

Por causa desses pensamentos, não me frustrei ao ter que dar uma pausa na minha corrida para fumar um cigarro. Eu havia dito que pararia. Na verdade, havia prometido parar, mas a missão havia se tornado impossível nos últimos dias, enquanto eu enfrentava a ansiedade.

Suspirei, percebendo que havia esquecido o maldito isqueiro, pensando se não seria um sinal para abandonar a fumaça de uma vez por todas. O ar estava frio, mas o suor escorria por minha espinha, perdendo-se na legging preta. Encarei meus tênis surrados, mas era meu único par de corrida.

Havia um grupo de adolescentes no parque onde eu estava, eles provavelmente teriam um isqueiro para emprestar, mas sentei-me em um banco ao invés de pedir. Minha mente vagou novamente para minhas preocupações.

Não era uma piada de mal gosto ou uma história de terror, era a minha história. Eu havia sido dada como morta com um ano de idade. Minha mãe me entregou para Leofric, e ordenou que ele me levasse embora e me mantivesse escondida. Ele era o comandante da guarda real, e não pensou duas vezes antes de obedecer sua rainha.

Desde então minha vida era uma grande confusão. Aos oito anos de idade eu aprendi a cozinhar minha própria comida, porque Leo sempre estava trabalhando e eu estava cansada de comer industrializados. Aos doze anos eu era capaz de administrar a casa sozinha e estudar.

É claro, eu estudava em casa, pois era uma opção aceita pelo reino. Porém, passava o dia me dividindo entre tarefas domésticas e os livros. Leo não era um cara ruim, mas não tinha o menor jeito para crianças, muito menos para garotinhas. Ele me respeitava o suficiente para nunca ter levado uma mulher para nossa casa, mas compensava isso sendo ausente na maior parte do tempo.

O resto não era justificado por nada disso, mas ainda era a realidade. Aos dezesseis anos eu descobri, graças a um vizinho, que o sexo poderia ser uma ótima válvula de escape. Aos dezessete descobri que o álcool e o cigarro complementavam esse alívio momentâneo. E essa era só a introdução.

Eu não era do tipo que dava trabalho para Leo, mas havia encontrado minha própria maneira de diversão, mas agora me sentia entediadamente velha para tentar ignorar meu futuro desastroso com cigarro e sexo. Isso só piorava tudo, ao que parece, porque além de ansiosa eu também estava irritada.

Havia um vazio em meu peito, um que não seria preenchido com cara nenhum, foda nenhuma ou droga nenhuma. Um vazio frio e perigoso que me deixava inconsequente, que despertava o pior de mim nas noites mais frias. E eu estava tentando ignorá-lo há muitos anos.

No entanto, ele se aconchegava mais toda vez que eu tentava escapar. E era exatamente isso que acontecia agora. Cocei a nuca, tirando os fios de cabelo molhados pelo suor do pescoço, sentindo vontade de correr até o bar mais próximo e usar um bom e velho whisky para relaxar.

Você precisa encontrar outra forma de aliviar seus demônios, Kai, ou eles vão te matar.

A voz de Leofric martelou em minha cabeça. Há algum tempo, ele se incomodava em me dar lições de moral, na esperança de me trazer para o caminho correto, mas ele havia desistido. Eu não tinha conserto. Eu estava quebrada.

Eu não tinha família, amigos, uma casa... porra, nem meu nome era real! Minhas amizades eram uma farsa, jovens interessados em uma curtição momentânea, que me servia às vezes, mas que me mostrava que, no fim, eu sempre estaria sozinha.

Como ali, naquele parque, segurando um cigarro apagado e fitando o grupo alegre de jovens. Eu não era normal, jamais seria, mas teria sido bom me enganar por um tempo. Só que, mesmo tentando me misturar, eu nunca consegui ser como eles.

Que drama. Esse pensamento me fez levantar, guardar o cigarro no maço, enfiá-lo no bolso lateral da legging e voltar a correr. O vento soprou meu cabelo, as nuvens ao sul mostravam que uma tempestade se aproximava, mas a casa de Leofric estava há duas quadras.

Meu peito martelou quando me dei conta de que a resposta do Blade & Blood já deveria estar na minha caixa de mensagens. Puxei o ar, acelerando o ritmo da corrida entre as árvores da rua 15.

Eu tinha sido obrigada a me inscrever, isso era óbvio. Era uma obrigação, uma lei, que todo jovem se inscrevesse. E, caso eu não realizasse minha inscrição, guardas da família real bateriam em nossa porta, o que seria um belo obstáculo em nossa tentativa de sermos discretos.

Leofric já estava em casa quando eu cheguei, havia voltado mais cedo do trabalho devido ao resultado do B&B. Ele me encarou com olhos profundos e escuros. Sua expressão denunciou o que eu já sabia.

Retirei os fones de ouvido do pescoço e deixei-os no balcão da cozinha, rodeando-o e encarando a tela do computador.

É com grande satisfação que informamos que sua inscrição no Colégio de Magia Blade & Blood foi aceita.

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