"... Está fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou, que te beijou meu amor...".
(Trecho de "Máscara Negra", música de Zé Ketti).
JAVIER RODRIGUEZ
O barulho das buzinas dos carros ao redor serviu de estopim para eu entrar em colapso. Deixei escapar uma gargalhada histérica e tentei contar mentalmente até dez, mas minha falsa calma tibetana me deu adeus no número oito, então abri a janela e botei a cabeça para fora
esbravejando com o motorista da pick-up que fungava como um touro bravo no para-choque do meu carro.
— Hijo de puta, por que usted não passa por cima? Diablo. – Gesticulei colérico levantando o dedo médio em riste, uma atitude surpreendente, inesperada por minha esposa, Maria, dada a minha personalidade sempre contida e educada.
— Javier, se acalme, sou eu que estou parindo, homem! – Maria ralhou fitando-me através do retrovisor, entre uma respiração "cachorrinho" e outra, levando a mão ao baixo ventre no instante em que se contorcia por causa de mais uma contração.
Sou um jovem médico, 29 anos, mas, apesar de jovem, tenho bastante experiência em emergências, porém não estava pronto para viver um momento desses. Levantei o queixo e os meus olhos se encontraram com os de minha amada, aflito a observei pelo vidro frio, virei o punho para avaliar os minutos que corriam no relógio e confirmei, angustiado, que o espaço de tempo entre uma contração e outra estavam encurtando cada vez mais. Um pigarro insistente me provocou uma tosse, e, sem que pudesse me conter, deixei escapar em voz alta o que acabei de pensar, balançando a cabeça em negativa.
— Isso não é nada bom.
As ruas no entorno do Largo do Campo Grande, bairro onde moramos, estão completamente engarrafadas, como poderemos chegar à maternidade antes do bebê nascer? Um grupo de homens travestidos, eufóricos e barulhentos, passou cantando em meio ao trânsito caótico com pistolas de água em punho, me fazendo pensar por breves instantes: Já não bastava a minha Maria entrar em trabalho de parto antes do previsto, ainda tinha que ser em plena noite de sábado de carnaval? O destino só podia estar sacaneando comigo.
Um gemido agoniado de Maria me tirou do meu "pequeno transe", me trazendo de volta para minha louca realidade, e o meu coração se espremeu no peito, quando Maria resmungou com todas as letras o que eu já imaginava.
— Não vai dar pra esperar, o bebê está nascendo, você vai ter que fazer o parto.
— Não, eu não posso... – arregalei os olhos e neguei rapidamente com a voz esganiçada.
— Claro que pode, se tem uma pessoa capaz de fazer o parto, esse alguém é você, meu amor. – Maria disse baixinho, em um sibilo agoniado.
— Mas é diferente, você é minha...
Maria retorceu o corpo no banco traseiro, com o rosto transformado pela dor, tal qual a garotinha do filme "O exorcista", prestes a vomitar gosma verde por todo o canto e me interromper com os olhos esbugalhados, estirando a boca espumante em uma linha rígida, os dentes cravados nos lábios para suportar seu martírio.
— Sou sua esposa e você é a porra de um médico, Javier, um pediatra, dos melhores, respire fundo e se acalme, você consegue.
Esperei o trânsito desengarrafar um pouco e estacionei o carro no acostamento, murmurando baixinho como se entoasse um mantra:
— Eu consigo, eu sou um médico, eu consigo, eu sou um médico! Estou mais do que acostumado a fazer partos, isso pra mim é mamão com azúcar – Disse num portunhol meia-boca, assim como minha determinação — É claro que eu consigo, porraaaa! – Larguei o volante e saí com os passos firmes, mas assim que abri a porta traseira e me sentei ao lado de Maria, e o seu sexo inchado se abriu como uma flor despetalada, a minha segurança se esvaiu como um fio d'água.
Quando foi que Maria desceu a calcinha pelos joelhos sem que eu percebesse, e essa penugem de pelos escuros entre as suas coxas? Não é possível que seja... Claro que é o bebê coroando, Deus, de jeito nenhum daria tempo.
— Eu não consigo, eu não... – o mantra entoado se transformou rapidamente em uma negativa veemente.
Maria passou a mão na testa, tirando os fios longos dos seus cabelos da cor de trigo grudados no rosto.
— Shh, olhe para mim meu amor, eu confio em você, Javier. – Ela sussurrou e segurou firme a minha mão com força, me dando uma injeção de ânimo e coragem.
— Obrigado, nós vamos conseguir, juntos, eu vou te ajudar a trazer o nosso bebê ao mundo.
— "Força", "Estamos quase lá, amor, só mais um pouco..."
Os minutos passaram em disparada, até que, após um instante breve e mágico, terminei de puxar o pequeno corpo ensebado, dei um tapa no bumbum do meu bebê grande e robusto, e, a todos os pulmões, o fruto do meu amor por Maria chorou anunciando ao mundo que acabara de chegar.
— A nossa filha nasceu meu amor, linda e saudável, não há palavras que eu possa expressar a felicidade, a emoção que eu sinto agora em ter a minha pequena nos meus braços, obrigado amor, pelo presente mais lindo que eu poderia ganhar em minha vida. – Sequei as lágrimas teimosas que caíam em cascata dos meus olhos, depositei com cuidado o bebê ainda sujo nos braços exaustos da mulher de minha vida, e disse, com o rosto lavado de lágrimas.
— Nosso presente, a nossa Rosa, seja bem-vinda, filha. É difícil acreditar que chegamos até aqui, em pensar como nossa história aconteceu, eu nunca poderia imaginar que encontraria o grande amor da minha vida em uma noite de carnaval.
1- Hijo de puta – Filho da puta, no idioma espanhol.
2- Usted – Pronome "você", no idioma espanhol.
3- Diablo – Diabo, no idioma espanhol.
4- Azúcar – açúcar, no idioma espanhol/ grito de guerra utilizado pela musa da salsa, Celia Cruz, ao iniciar seus shows.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A cartomante - Paixão Foliã
Short StoryPrimeiro conto da duologia Paixão foliã. Javier Rodriguez é um homem dedicado exclusivamente a sua profissão, seus relacionamentos amorosos se limitam a alguns momentos de prazer e nada mais. Maria da Anunciação se entregou desde cedo ao casament...