Eu só conhecia a voz dele. Todos as noites ele ligava no restaurante e pedia o prato do dia e uma água com gás. Quando o sistema apitava a ligação dele, eu até já preparava a comanda, mas gostava de ouvir ele pronunciando as palavras. Tinha alguma coisa no tom de voz e na forma que ele articulava que parecia fazer as sílabas entrarem dançando no meu ouvido.
Tinha dias que ele ligava animado, a conversa se estendia por alguns minutos além do pedido do jantar. Tinha dias que ele era tão seco que me gelava a espinha somente no "alô".
Logo em uma das primeiras vezes ele se interessou pelo meu nome. As vezes ele me chamava por ele, mas a maioria das vezes me chamava de senhorita. Aquela palavra meio antiguinha parecia dar piruetas na voz dele. Cada vez que eu ouvia, uma coisinha quente se revirava dentro de mim. Comecei a ter a impressão que ele usava ela deliberadamente em alguns momentos, como se ele pudesse sentir pelo telefone o efeito que ela me causava.
Claro que eu também sabia o nome dele, estava lá no sistema de entrega, mas era natural pra mim chamá-lo de senhor, afinal era um cliente.
Nossas micro conversas diárias seguiam acontecendo quase sempre no mesmo horário, ele parecia ser alguém bastante metódico e que mantinha uma rotina bem regrada. Quando me dei conta estava tomada pela expectativa constante da ligação dele.
Certo dia o entregador voltou da casa dele com um pacote pra mim, um embrulho caprichoso de papel pardo, identificado com uma caligrafia precisa. Recebi envergonhada e coloquei rápido na bolsa sem abrir. Passei o resto da noite atendendo o telefone com a sensação de que tinha uma bomba prestes a explodir dentro da minha bolsa.
Cheguei em casa fritando de ansiedade, já fui rasgando o pacote no elevador. Era um livro, A História de O. Na primeira página uma dedicatória escrita com a mesma caligrafia precisa do pacote.
Para a senhorita cuja voz e o serviço dedicado alegram minhas noites como poucas pessoas foram capazes até hoje.
Fechei os olhos e a imaginação me trouxe a voz dele dizendo aquelas palavras. A palavra "senhorita" dançando na minha cabeça com a entonação que ele dava quando queria me provocar.
Eu estava morta de cansaço, mas o desejo de começar a ler venceu. Fiz um café e mergulhei na leitura.
A noite passou sem eu perceber e a manhã avançou sem trégua, até que eu cheguei nas últimas páginas do livro. Parecia que um universo inteiro tinha se aberto dentro de mim, mergulhar nas descobertas daquela mulher foi como mergulhar nos meus próprios desejos mais profundos.
Eu fiquei imaginando em que momento das nossas curtas conversas diárias ele tinha percebido que existia tudo aquilo dentro de mim. Ou não tinha percebido? O fato de eu ter me identificado com o livro podia muito bem ter sido apenas um golpe de sorte. Mas algo me dizia que não foi.
Cheguei para cumprir meu turno no restaurante com olheiras gritantes, o corpo moído e algo constantemente em ebulição dentro de mim. A cabeça não parava.
Errei vários pedidos aquela noite, cada ligação que apitava eu olhava ansiosa para ver se não era dele. Como se estivesse prevendo a minha ansiedade, ele demorou para ligar. Nunca tinha se atrasado tanto. Quando a ligação dele finalmente apitou, o restaurante já estava quase fechando.
Diferente das outras noites, pela primeira vez ele não pediu o jantar. Pediu apenas a garrafa de água com gás com palavras secas, não teve nenhuma abertura para que eu agradecesse o presente e dissesse que me interessei pela leitura. Resolvi mandar junto com a água um bilhete agradecendo pelo livro, até escrevi que tinha passado a noite lendo, mas algo me impediu de expressar tudo o que aquela leitura tinha despertado em mim. Acabou que foi um bilhete tão seco quanto as palavras que eu ouvi ao telefone.
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A Voz
Short StoryA jovem que atendia o telefone só conhecia seu cliente pela voz, ainda assim aquele homem misterioso despertava nela desejos impensáveis e impulsos que ela nunca imaginou que teria.