Quando o Palhaço Sorri

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Ele termina o número tirando uma moeda detrás da orelha de um garotinho e a plateia se divide entre sons de surpresa, assobios e aplausos frenéticos. O garotinho volta para o seu assento na primeira fileira onde a mãe o espera com um sorriso largo no rosto. Ela está feliz que seu filhinho fora escolhido dentre tantos para participar e agora terão uma história quase única para contar. O palhaço faz uma reverência e quando sai do picadeiro ainda pode ouvir aplausos ao longe.

Já na coxia, passa por ele uma garota carregando uma quantidade inacreditável de bambolês nos braços, ela veste um collant roxo cheio de lantejoulas e parece conversar sozinha. Não fala com ele.

Tem várias pessoas circulando por ali. Se preparando para os seus números, conversando, rindo. Ele não sabe o porquê, mas não sente vontade de ficar para conversar como outrora gostaria tanto de fazer. Ele só quer sair, se isolar, esperar até ter que se apresentar novamente e então fazer tudo de novo.

Ele puxa a lona e sai para o pátio onde estão estacionados os trailers. Ele não tem um próprio, luxo destinado apenas aos donos do circo. O trailer onde mora é dividido entre ele, o palhaço, um acrobata e um ilusionista. O número do ilusionista é mais tarde, então agora ele provavelmente ainda está no trailer.

O palhaço quer ficar sozinho, então continua andando até a cerca que contorna o terreno onde o circo fora montado. Ele se senta no chão e sente uma vontade esquisita de puxar um cigarro, apesar de nunca ter fumado. É como se a sua situação combinasse com um vício. Ele sopra uma fumaça inexistente no ar. Cria mais uma história diferente para si na própria cabeça. Imagina um cara feliz, com um sorriso que não seja pintado no rosto. Nessa história tem uma família, só dele.

Em meio a tantos devaneios, o palhaço demora a perceber que o circo está pegando fogo.

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Os momentos que se seguem são mascarados por gritos, fumaça e calor.

Ele quer ser herói, quer adentrar a lona em chamas e salvar tantas pessoas quanto seus braços aguentarem carregar, mas a realidade é que o palhaço somente atende ao instinto de pular a cerca e correr para salvar a si próprio.

Tudo lá é inflamável e o fogo se espalha numa rapidez colossal. Ele corre. Não sabe o que fazer além de correr e correr. Só para quando não aguenta mais e desaba no chão de uma rua escura e vazia qualquer. Ali, ele não escuta mais nada, mas ao olhar para trás vê a fumaça subir ao longe.

O palhaço chora. Seu corpo começa a tremer e o desespero toma conta. A vida dele estava pegando fogo e ele só soube correr.

Tudo o que ele conhecia estava pegando fogo e ele fugiu. Suas lágrimas se tornam mais densas, ele se sente um miserável. Passa mais tempo chorando do que percebe. Precisa voltar. E volta.

Ele não tem mais forças para correr, ainda está tremendo e chorando, não sabe se é o medo ou a vergonha. No fundo, continua com vontade de voltar a correr e fugir, mas não consegue pensar muito nisso, pois logo o barulho das sirenes enche seus pensamentos.

Mais perto, porém ainda ao longe, ele pode ver bombeiros agrupados com longas mangueiras na mão molhando a lona queimada, mas aparentemente o fogo já cessou, restando só uma densa fumaça branca tomando o céu.

Continua andando. Também tem ambulâncias em volta, pessoas andando e correndo por todo lado, a cacofonia dos sons o deixa ainda mais atordoado do que já estava.

De repente, um som se sobressai ao tumulto.

— Marcus! — Ele se vira na direção da voz que chama o seu nome. — Marcus!

É Priscila, uma das malabaristas com a qual ele costuma passar horas a fio no pátio devaneando quando o sono não vem. Ela está com a maquiagem borrada, o figurino rasgado, o cabelo escuro completamente desgrenhado. Seus olhos estão quase completamente vermelhos. Ela está chorando quando pula nele.

Priscila é pequena, então ele a segura sem dificuldade. Devolve o abraço que lhe aperta tanto que o deixa sem ar. Ela chora em seu ombro e ele não consegue entender bem o que está acontecendo.

— Vo-você tinha sumido. — Ela gagueja em meio aos soluços. O aperta ainda mais como se tivesse medo dele desaparecer sob o seu toque. — Achei que tivesse morrido.

Ele não entende. Tinha imaginado que ela estava naquele estado pelo trauma de toda a situação, mas era por ele? Alguém ali se importava com ele?

— Eu estou bem. — É tudo o que o palhaço consegue dizer.

Ela continua atrelada a ele. O coração se acalmando, a respiração ficando regular. Quando enfim parece que se acalmou, Priscila não faz menção de descer do seu colo, se afasta somente o suficiente para que fiquem face a face.

Marcus não sabe o que esperar, mas sente uma ansiedade crescer de repente. Mas tem outra coisa: um sentimento tão esquecido que ele demora a conhecer.

Tantas emoções depois de tanto tempo sem sentir nada o deixaram na mais completa confusão e ele se sente uma criança que, por não saber como se expressar, só quer chorar, chorar e chorar.

Uma lágrima desce quando ela o beija. Algo desmorona e depois cresce dentro dele e então não há mais fôlego.

— Não some nunca mais. — Ela impõe quando se afasta repentinamente. Agora parece brava. — Nunca mais.

Ele assente, sabe que agora não o faria nem se quisesse. Ela volta ao chão, mas não solta totalmente o abraço. Eles voltam os olhares para o circo desmoronado.

— Conseguimos evacuar a tempo, houveram alguns feridos, mas ninguém morreu. Só você que... — Ela o aperta novamente. — Enfim. Estamos todos desolados, mas eu sei que vamos nos reerguer. Vai dar tudo certo.

Ela parecia estar falando mais consigo mesma do que com ele, tentando nutrir a esperança em meio ao caos.

Marcus sentiu um súbito alívio. Mais um sentimento para a conta. No cenário mais improvável, sente que dias melhores virão. Ele enxuga as lágrimas com as costas dos dedos e quando abaixa a mão, pode vê-la manchada pela tinta vermelha que pintava a boca do palhaço e finalmente sabe que não precisa mais dela para sorrir.


FIM

Quando o Palhaço SorriOnde histórias criam vida. Descubra agora