- Notas iniciais -
Quem é vivo sempre aparece.
Capítulo um
Respirou fundo mesmo que sentisse as lágrimas gordas escorrerem dos seus olhos. Sentia-se pequena dentro do robe acetinado, alguns tamanhos maior que o seu número, e sobre a gigantesca king-size no centro do quarto. Tentou inspirar calmamente, mas foi impedida ao se afogar outra vez no próprio pranto. Seu corpo inteiro doía, mesmo que ele não tivesse encostado um dedo nela. Não era preciso. Lucius conseguia humilhá-la facilmente, bastava um olhar de desprezo. Palavras e ações podiam machucar mais do que lâminas, e Narcissa sangrava através de hematomas que só ela enxergava, só ela sentia.
A garganta coçava pelos gritos que havia direcionado ao marido. Os ouvidos ainda escutavam os berros venenosos de Lucius. Fazia quarenta minutos que ele havia batido a porta, levando consigo o pouco de bem-estar que restava nela e que ele tinha arrancado. Para trás deixou, no entanto, o fedor das suas atitudes podres e pouco humanas. Era triste, embora verdadeiro, dizer que qualquer resquício de amor - e respeito - deixara de existir em seu casamento. Mas era vergonhoso admitir que tudo que sentia pelo marido era asco.
Hoje, com neblina em sua mente, mal conseguia recordar do início, quando ela e Lucius eram um casal apaixonado. Ele puxava a cadeira para que ela se sentasse. Ele abria a porta do carro para que entrasse. Ele a exibia orgulhosamente, como quem diz: "esta é a minha mulher, seus perdedores, filhos da puta. Apenas olhem e desejem estar no meu lugar."
Na primeira gravidez, ele a tratou como uma santa. Não a tocava nem a desejava mais. "Você está grávida, querida. Está louca?", dizia ele toda vez que a esposa o beijava com um pouco mais de vigor. Lucius não escondeu a decepção ao descobrir que seu primeiro bebê era uma menina. Afinal, qual seria o seu valor? O que a pequena Cibele poderia vir a ser, além de uma menina bonita, a cara da mãe? Decerto, não poderia assumir os negócios da família Malfoy. Mulheres, dizia Lucius, não tinham o pulso firme e a sagacidade necessária para isso.
As coisas melhoraram um pouco quando Narcissa trouxe Draco ao mundo. Finalmente o filho homem o qual Lucius tanto ansiava, o seu garoto, o seu "primogênito", falava ele, desconsiderando Cibele. E então Narcissa era sua esposa amada, a mulher da sua vida, que havia lhe dado um menino tão forte, tão saudável, tão parecido com ele. E, de repente, ele queria mais. Lucius queria mais filhos, queria uma família numerosa. Narcissa sabia, porém, que aquele desejo só se completaria se ela parisse mais dois ou três mini Lucius; pequenas Narcissas não estavam em discussão. Acreditava que havia sido ali que o casamento realmente começou a se desestruturar, porque foi quando começou a esconder segredos do marido. Sem que Lucius sequer imaginasse, faziam anos que Narcissa guardava suas cartelas de anticoncepcional no fundo do closet.
Dentre os milhares de motivos que encabeçavam as discussões nos últimos anos, o motivo daquele dia foi a falta de comprometimento de Lucius, com acréscimo das humilhações psicológicas que direcionava à esposa. Ele havia cancelado, em cima da hora, um jantar em família. Narcissa já estava quase pronta, faltava apenas o vestido, que a esperava dobrado sobre a poltrona da penteadeira.
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Entreolhares
FanfictionMesmo que não fosse fácil, a vida de Narcissa havia adquirido contornos rotineiros. Ela e Lucius teriam uma briga por algum motivo torpe, que terminaria com ele sumindo por um ou dois dias e com ela buscando refúgio no mais saboroso lugar: o seu res...