Capítulo único

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Um último olhar no gelo

Mesmo aquecido pela lareira, o clima do quarto nunca esteve tão gélido. As paredes eram coloridas pela labaredas, mas proviam pouca luz para que fosse possível entender as expressões do casal. Este, se mantinha separado, o homem sem coragem para dar um único passo e a mulher com coragem em demasia para ignorar sua presença. Daquela posição, a única coisa que ele conseguia ver eram suas costas, tingidas num laranja cru pelas velas, tão alta e imponente, que pareceu sufocar suas poucas palavras quando enfim teve coragem de dizê-las.

— Por que você não pode olhar para mim?

— Porque você escolheu não me olhar. Você escolheu não me dar nem mesmo um último olhar naquela noite — suspirou, mal controlando sua respiração. — A última coisa que vi foi você desaparecer no gelo, sem olhar para trás.

De tudo naquela noite, do frio que cortava a pele e congelava as lágrimas em seus cílios, esta foi a parte mais dolorosa que Brienne tentava desesperadamente apagar. Ver o homem que amava desaparecer na neve sem arrependimentos, cavalgando, trotando para longe dela.

— Eu não podia.

— Não podia? — perguntou irritada.

Queria se virar para ele, olhar em seus olhos e deixar que ele visse a desgraça que ela era. A desgraça que ela era apenas quando estava com ele. Ao invés disso, de maneira sórdida e mágica — como as coisas parecem acontecer no Norte —, ouviu as palavras de Jaime completarem a de seus pensamentos.

— Eu não consegui. Não consegui olhar para você.

Trapaceando a própria ira, a cavaleira esquivou os olhos para o espelho em sua frente, vendo no canto os orbes esmeraldinas, ainda brilhantes depois de tantos anos. Jaime era a única pessoa cujo os olhos se completavam às safiras de Tarth. Talvez, ela confessava em seu âmago, também tivesse a única alma que se completasse à sua.

— Por que era muito constrangedor? — sibilou.

— Porque eu não aguentaria ver em seu rosto o que eu me tornei. — Com o silêncio, viu o homem se mexer ansioso, movendo a mão como se as palavras em sua boca não fossem o suficiente. — Ver o que eu realmente sou através de você, e destruir quem você achava que eu era.

Jaime derramava suas palavras como se fossem doces elogios, mas para ela não passavam de duros insultos. A inocência lhe cobrou muito caro por muitas vezes para ele a glorificar desta forma. Na verdade, ele mesmo fora um dos resultados cruéis que seu coração bobo lhe proporcionou.

— Acha que minha visão era turva?

— Sem dúvidas eu era mais bonito quando estava com você, Brienne.

E então, ao ouvir seu nome declamado como um antigo feitiço, a mulher decidiu deixar que seu corpo se virasse e que as safiras e esmeraldas enfim se unissem. Naquela nova posição, encarando diretamente o rosto manchado de cinzas e sangue pelos cortes fundos, mas ainda indiscutivelmente belo, Brienne se imaginava como uma tocha tentando derreter todo o gelo do Norte. Inútil. Idiota. E trêmula.

— Se pensa isso então você está mais errado do que o maior dos tolos — disparou, queimando por dentro. — Ninguém nos Sete reinos jamais amará alguém como eu amei você, Jaime Lannister. Eu te amava com respeito, carinho, lealdade e amizade. Não te via como um cavalheiro branco ou um regicida, eu via todas as suas partes, as boas e as ruins à qual me acusa de cegueira. Sempre soube do que era capaz de fazer por amor, ou pela honra.

Olhou para sua mão decepada. Ela ainda podia se lembrar do gosto amargo que sentiu ao ver o sacrifício que ele fez por ela. Quando sem saber, trocou muito mais do que sua mão pela honra de sua própria inimiga. Era o gosto que sentiu quando ele a fitou de seios nus com o olhar lascivo, desmaiando depois de alvejá-la com segredos. Da mesma forma que fez estações depois, se deitando sobre o seu corpo e a fitando da mesma forma, fazendo com que ela se sentisse a mulher mais bela e única dos Sete Reinos. Apenas para em seguida abandoná-la ao nada.

Um último olhar no geloOnde histórias criam vida. Descubra agora