Julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me
perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que
se misturam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que
eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão
gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de
uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali
pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. E uma espécie de
prostituição. Um sujeito chega, atento, encolhendo os ombros ou estirando o beiço,
naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma
opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as
letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram.
As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações
das palmas cicatrizaram.Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na
repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares
aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma
resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão,
capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica
muito reduzida.À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca
emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no
guarda-comidas, automóveis roncam na rua.
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina Depois, aproveitando letras
deste nome, arranjo coisa, absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte
nomes. Quando não consigo formar combinações novas traço rabiscos que
representam uma espada, uma lira uma cabeça de mulher e outros disparates.
Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com o: desenhos:
processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que
me desprezam porque sou um pobre-diabo.
Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando,
indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como
um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fazejo dos negociantes que
soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria.
Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de
cobrança. Bilhetes inúteis: mas dr. Gouveia não compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis,
já reformulada. E coisa piores, muito piores.
O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e
tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce.
Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.
Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que
publicou por dinheiro na secção livre de um jornal ordinário. Meteu esse
trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do bureau. Está
cheio de erros e pastéis. Mas dr. Gouveia não os sente. O espírito dele não tem
ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda da propriedades e o
cobre que o tesouro lhe pinga.
Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos
violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas,
caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e
secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima
de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de
Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão
viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso.
Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado
em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até
que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas.
Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida
monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é
estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o
relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta-da Terra.
Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma
viagem, embriaguez, suicídio. . . Penso no meu cadáver, magríssimo, com os
dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos
do cigarro cruzados no peito fundo. Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e
conduzirão para o cemitério, num caixão barato, a minha Carcaça meio bichada.
Enquanto pegarem e soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete
de carregar defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na
Diretoria da Fazenda.
Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a
lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento
dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando
a rua.
À medida que o carro se afasta do centro sinto que me vou desanuviando.
Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lado
esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das
mulheres que usam peles de contos de réis. Diante delas, Marina é uma ratuína.
Do lado direito, navios. Às vezes há diversos ancorados; Rolam bondes para a
cidade, que está invisível, lá em cima, distante. Vida de sururu.
Há quinze anos era diferente. O barulho dos bondes não deixava a gente
ouvir o sino da igreja. O meu quarto, no primeiro andar, era um inferno de calor.
Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam para a escola, estudar medicina,
eu dava um salto ao Passeio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário da
polícia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurora, que naquele tempo era
velha, morreu.
O calor aqui também é grande demais. E faltam plantas. Apenas, um pouco
afastados, coqueiros macambúzios, perfilados, como se esperassem ordens.
Cidade grande, falta de trabalho. O meu quarto ficava junto à escada, e à noite o
cheiro do gás era insuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudante e
repórter, vinha despejar sobre a minha cama um compêndio de anatomia e uma
cesta de ossos.
O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de paIha,
crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe.
D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às seis horas encostava-se ao
guarda-roupa e rosnava, agitava os caracóis brancos, pregava os óculos nos
hóspedes que comiam demais e nos que estavam em atrasados. Havia um rapaz
de Minas, dispéptico, que ela adorava e queria casar com a neta. Enquanto os
outros mastigavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre os discursos da
Câmara.
Retorno à cidade. Os globos opalinos do Aterro iluminam o gramado murcho
e a praia branca. Os coqueiros empertigados ficam para trás. Penso numa ditadura
militar, em paradas, em disciplina. Os navios também ficam para trás. A pensão, o
meu quarto abafado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos Dagoberto somem-
se.
O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação
estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.
Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as pessoas
conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me,
esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez
da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande
desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior.
Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem
percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita, os palacetes que
têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de
Bebedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho
experimentado estes últimos tempos, nunca existiram.
Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam
mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros
manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho
para cigarros, lendo o Cozrtos Magno, sonhando com a vitória do partido que
padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira,
envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amarro vaqueiro cortava nos
cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as línhas da casa. No chiqueiro
alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras
sem folhas. Tinham amarrado no pescoço da cachorra Maqueca um rosário de
sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia em cumbucos cheios de
miudezas, escondia peles de fumo no caritó.
Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha avó,
sinhá Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não
existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques
tremendos. As vezes subia à vila, descomposto, um camisão vermelho por cima da
ceroula de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercata e varapau. Nos dias
santos, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo dele e agora
possui venda sortida, encontrava o antigo senhor escorado no balcão de
Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O
preto era um sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usava
sobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um bolso a outro do
colete, chinelo de trança, por causa dos calos, que não agüentavam sapatos. Por
baixo do chapéu duro, a testa retinta úmida de suor, brilhava como um espelho.
Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quando via meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com
amoníaco.
Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de
mestre Domingos e gritava:
- Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro.
Quando o carro pára, essas sombras antigas desaparecem de supetão - e
vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação pública,
espaçados, cochilando, píongos, tão píongos com luzes de cemitério; um palácio
transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras, barreiras
cortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábrica de tecidos; e, de Ionge em
longe, através de ramagem: pedaços de mangue, cinzentos. À medida que nos
aproximamos do fim da linha as paradas são menos freqüentes. Os postes
cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, as recordações da
minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva precipita-se também.
Estava pegando um século quando entrou a caducar. Encolhido na cama de
couro cru, mijava-se todo, contava os dedos dos pés e caía na madorra; De
repente acordava sobressaltado:
- Sinhá Germana!
Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaqueiro, deixava a rede,
impaciente:
- Que é que há?
- Homem, você não me dirá onde está sua mãe?
Aqui mais de uma hora chamando essa mulher!
- Morreu.
- Que está me dizendo? Estranhava o velho arregalando os olhos quase
cegos. Quando foi isso?
Camilo Pereira da Silva amolava-se:
- Deixe de arrelia. Morreu o ano passado.
- Tanto tempo! dizia Trajano. E vocês calados. . .
- Punha-se a folgar com os dedos e pegava no sono. Quinze minutos depois
estava berrando:
- Sinhá Germana!
Acabou-se numa agonia leve que não queria ter fim. E enterrou-se na
catacumba desmantelada que nossa família tinha no cemitério da vila. Mestre
Domingos pegou na alça do caixão e declarou a meu pai que a morte é um
mundéu. Fomos morar na vila. Meteram-me na escola de seu Antônio Justino, para
desasnar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um
cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a
conjugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava
olhando as paredes, esperando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que
marcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar
papagaio. Sempre brinquei só.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Angústia - Graciliano Ramos
RomanceOlá caro leitor, essa grandiosa obra é demasiadamente tocante, consegue despertar sentimentos que talvez jamais tenha sentido, posso lhe adiantar que, o título faz juz a obra... ANGÚSTIA. Boa leitura caro amigo. Vou postar aos poucos...