⠀⠀
⠀⠀Normalmente, não acontece de ser eu o atrasado; sempre estive do lado que aguarda o outro. Não contei com o fato de não estar familiarizado com as ruas de Jericho quanto minha convidada, moradora de longa data. Diante da sorveteria – escolha pessoal da entrevistada –, certifiquei-me de que estava com tudo no lugar: câmera, gravador, cadernos e canetas; cada objeto em seu devido bolso de meu sobretudo.
⠀⠀Pelo grande vidro do estabelecimento, procurei pela figura feminina de cabelos selvagens e ruivos, usando óculos pretos e – como mencionou que estaria – vestindo blusa floral amarela, Rune Leis Sob. Uma mulher misteriosa, pomposa, mas agradável. Em conversas anteriores, Sra. Leis Sob não se esforçava para ser amigável e convidativa, habilidade suas muito bem lapidas; uma anfitriã digna, tratava-me como se nos conhecêssemos há séculos, oferecendo agrados de todos os tipos. Lembro-me do quão alegre ficou ao receber minha proposta, não me surpreendeu. Pessoalmente, ela apresentou todo egocentrismo necessário para uma pessoa que adoraria falar sobre si; sem interrupções, apenas dúvidas. Entretanto, outra figura, uma loira, tomou minha visão: uma pequena criança me observando, sentada de pernas cruzadas sobre uma mesa.
⠀⠀Despreocupado e sorridente, acenou para mim. Um ato corajoso de sua parte, o qual retribuí sorrindo suave; não vim por ele, talvez tenha notado. Embora eu não precisasse do casal da mesa, alheios conversando, sem conhecimento da criança entre seus rostos, eles eram uma boa prova do que já sabia, apenas mirando-o.
⠀⠀O loirinho estava morto, um fantasma, e se divertindo no ambiente natural de qualquer criança.
⠀⠀Ao entrar, virei-me para a direita, ouvindo ser chamado pela voz de Sra. Leis Sob, sentada em uma mesa afastada ao lado da vitrine, dentro de uma cabine acolchoada azul com espaço para três ou quatro pessoas. À medida que me aproximo, fixei-me imediatamente em sua presença enigmática, da qual fui incapaz de controlar um sorriso escárnio. Seus cabelos ruivos de raiz loira, como chamas suaves dançando ao vento, adicionam um toque de mistério à sua figura elegante. Seu sorriso, embora gentil, parece esconder mais do que deseja mostrar. Sua postura é impecável, transmitindo uma confiança silenciosa, já vista, que desperta minha curiosidade ainda mais. Podia ouvir meu peito crepitar em esperança por uma história, acessas por seus olhos verdes brilhando com uma intensidade intrigante; como se estivessem constantemente avaliando meus passos.
⠀⠀
⠀⠀Quero torcer-la até a último gota de informação.
⠀⠀
⠀⠀— Boa tarde, Fowler querido — Leis Sob tem uma voz profunda, adequada para idade que aparenta ter.
⠀⠀— Boa tarde, peço desculpas pelo atraso
⠀⠀— Que isso, não se preocupe. Não tem dez minutos que cheguei
⠀⠀Arrumava minhas coisas sobre a mesa quando a vi se virar e chamar um atendente, com o gesto universal de mão. Ela previu minha negação, pondo um dedo frente a meu rosto.
⠀⠀— Eu insisto, você me cede horas da sua eternidade para falar sobre mim e eu lhe dou um sorvete
⠀⠀— Isso é injusto — Bem, não acontece muitas vezes, quase nunca. Me assustei com a voz masculina e infantil ao meu lado. — É melhor dois grandões
⠀⠀Era o garotinho, bem acomodado, balançando as pernas comportado. O observei soslaio, ele ficou louco? Deve ter falecido recentemente... Não, ele é velho, sua estrutura é bastante definhada. Ele tem, deve, noção do que se aproximar de mim significa. Todavia, o deixei. Rune não o percebeu e iria fingir o mesmo.
⠀⠀Ela pediu um milkshake para cada, não me importava o sabor, era bom. Mas não me demorei mais. Limpei a garganta após uma grande golada, arrumei a postura e, depois de ligar o gravador, a mirei com um olhar suave; e tão cheio de segundas intenções que me vangloriava por saber esconde-las.
⠀⠀— Que tal se apresentar? Conte-os sobre você. Eu lhe conheço, o suficiente, mas nossos ouvintes estão curiosos — pus o queixo sobre as palmas, sustentado com cotovelos sobre a mesa.
⠀⠀— Tem razão — Pigarreou, arrastando-se no sofá para mais proximidade. — Uma boa tarde, é um prazer. Me chamo Rune Leis Sob, sou professora do fundamental, hnm, uma pessoa que funciona melhor durante a noite... Ah! Sou um wendigo
⠀⠀Ela sorriu, como se poder anunciar em voz alta fosse algo excitante, algo preso ao fundo da garganta que enfim podia libertar. E de fato poderia, embora a ideia “todos devem ter acesso a informação” me agrade, esta edição não era para qualquer pessoa ter acesso. Não por minha conta.
⠀⠀— Wendigo? Que interessante... — embora já soubesse. — Não são aquelas criaturas dos mitos dos norte-americanos? Os...
⠀⠀— Que cederam aos prazeres da carne
⠀⠀Um silêncio súbito sucedeu a interrupção.
⠀⠀Queria ver que cara fiz, sinceramente, calado e com o olhar indiferente de Rune fitando-me, esperando qualquer reação precária. Enquanto ela tomava mais um gole do milkshake.
⠀⠀— Literalmente — um ruído estranho saiu entre os lábios, os quais lambi, seguindo incerto com o que pode ser uma piada ou uma afirmação séria.
⠀⠀Leis Sob deve ter percebido, visto o riso baixo que soltou. Por outro lado, o garoto deu a gargalhada da sua vida. Ahm... Digamos assim.
⠀⠀— Sra. Leis So...
⠀⠀— Rune, está bom
⠀⠀— Rune — que coisa, detesto, soa estranho. Como normalmente soa o nome dos amaldiçoados. Mas este veio com gosto. — Temos alguma, na verdade, bastante ciência de quem seja. Mas isto diz respeito ao agora
⠀⠀Relaxando os ombros, aprofundei o encarar, nenhum nunca quebrando o contato visual. Mas ainda mantendo a postura convidativa.
⠀⠀— Porque não nos conta o antes?
⠀⠀Ali está, aparecendo tão cedo quanto o esperado. Um brilho curioso em suas iris enquanto terminava de tomar seu milkshake, um último gole decidido. Seus lábios, levemente manchados do sorvete vermelho, curvaram-se amistosos, como se ponderassem sobre qual etapa do antes compartilhar primeiro. Isso era tão... Irritante. Por isso não costumo ficar tanto tempo perto de seres de natureza condenada, sem ter conhecimento profundo. Me abstenho de ficar diante de um borrão. É como terem morrido e escapado de algum colega, mas nunca é o caso.
⠀⠀Pessoas mortas que nunca morreram... Teria nojo se não sentisse pena.
⠀⠀
VOCÊ ESTÁ LENDO
As vozes da sepultura
Paranormal⠀⠀Cansado de ouvir histórias sem seu consentimento, sente-se incomodado quando tudo o que busca é terminar o trabalho do qual não existe demissão. Fowler busca por algum lazer no que realmente desperte interesse e a criação do sinal de rádio se apre...